Porque somos ocidentais, podemos admitir que é possível pôr em confronto, no mesmo campo, uma equipa de futebol e outra de futebol americano. A coisa resultará algo confusa. Serão de esperar atitudes diversas em resultado de concepções diversas, mas, havendo acordo entre as partes e seguindo a experiência em frente, sempre existirão pessoas capazes de aí ver saudável entretenimento, conquanto sirvam pipocas na bancada e façam um espectáculo de
cheerleaders ao intervalo. A imaginação dita os limites, e uma sessão de
strip-tease na Assembleia da República, com
table dance para o primeiro-ministro, poderia ser encarada como ousadia estética, pelo menos enquanto a polícia não desmobilizasse as artistas. Os absurdos exemplos constituiriam, reconheça-se, exercícios de liberdade de expressão e de criação, pouco importando se entendidos ou apreciados pelo público. Não creio que se passe o mesmo com os cartoons dinamarqueses. Tentarei explicar porquê.
Por mais que a economia nos una a todos, não importa agora se em torno da prosperidade ou da miséria, nunca a globalização será um fenómeno de mentalidades. As diferenças entre civilizações, mais do que meras divergências culturais, assentam em distintos esquemas mentais, valores contraditórios, leituras opostas, formas de reagir adversas, simbologias dissonantes. Por exemplo, querer impor a democracia de tipo ocidental no Iraque ou, ainda mais, no Afeganistão, choca com o entendimento dos povos, pelo que é algo apenas sustentável pela forte presença militar alienígena, ou seja, pela coacção, ou seja, pela ausência de democracia. De igual modo, a liberdade de criação, que para nós é inalienável, pode, para outros, ser desprovida de sentido, incompreensível. Mais: responsabilizar toda uma nação, ou um estado, por atitudes de indivíduos ou de grupos restritos, como a criação e a publicação dos cartoons de Maomé, é, aos nossos olhos, uma tontaria, mas é algo absolutamente legítimo, do ponto de vista dos que um pouco por todo o lado vão manifestando a fúria que deles se apossou.
Não importa, para esta discussão, se os islamitas revoltados são, ou não, instrumentalizados, para servir objectivos de lideranças político-religiosas (a mistura é evidente e, claro, resulta de concepções de estado bem distintas, em que a laicidade equivale a blasfémia). Importa, porém, deixar claro que são instrumentalizáveis, mais devido a padrões mentais do que a fenómenos de opressão ou pobreza.
É claro que, como ainda ontem me diziam, também a má arte é arte, e negar-lhe o direito a existir põe em causa alguns dos nossos valores fundamentais. Não quero entrar pelo caminho do gosto, e cada um pode criar o que lhe apetecer, bem como qualquer publicação pode publicar o que lhe apetecer, partindo do pressuposto de que uns e outros poderão ser responsabilizados, pela sociedade ou, até, pelos tribunais, se for caso disso. Estou, aqui, a falar em abstracto, mas passo já à concretização. E pergunto se o jornal tinha o direito de publicar os cartoons, para responder de imediato que sim. Publicou, assim o entendeu, e as consequências existem, não as podemos ignorar. Tudo, na vida, resulta de escolhas, e os jornais são, de uma ponta a outra, resultados de escolhas. Editar é, em primeira análise, escolher, conceito que, em si, encerra as duas posturas possíveis em face de uma matéria: publicar e não publicar.
A escolha de não publicar, que a cada dia é feita nas redacções de todo o mundo, não é, necessariamente, um gesto de autocensura, de cedência a pressões ou de desistência. Pode ser (deve ser), muito simplesmente, o resultado da ponderação. E a ponderação, num caso destes, teria de passar pelas reacções que eventualmente seriam desencadeadas no universo muçulmano, ou, se preferirem, nos sectores mais radicais do Islão. Ao não publicar os cartoons, estariam os responsáveis editoriais do jornal a abdicar de princípios fundamentais? Creio que não. Por uma razão muito simples. A intransigência na defesa da liberdade de criação e de expressão faz todo o sentido no nosso universo mental, ou seja, de “ocidental” para “ocidental”, mas existe sempre a possibilidade (a possibilidade, repito) de não o fazer num quadro civilizacional que nos é estranho, por mais que digamos conhecê-lo ou compreendê-lo. Mais do que divergências de opinião, poderemos ter pela frente desencontros inevitáveis de mentalidades.
A água e o azeite não se misturam, o que não obsta a que beneficiemos de uma, essencial à vida, e de outro, preponderante na nossa dieta, o que quer dizer que ambas as substâncias encontraram em nós uma forma de convivência. Ora, isso, se aplicado a pessoas, decorre da noção do outro e da noção de que nós mesmos somos, para os demais, esse outro. Aplica-se a pessoas e aplica-se a povos. Aplica-se a estados e a civilizações. A credos e a ideologias. Está sempre presente a necessidade de encontrar equilíbrios, a partir do respeito, da não interferência na esfera da intimidade alheia, da humildade. Tempos houve em que o mundo islâmico dava lições de tolerância e progresso civilizacional à cristandade. Tal deveria ser suficiente, se o carácter pedagógico da memória funcionasse, para que algum pudor nos impedisse (ao Ocidente) de querer impor ao mundo uma escala de valores que nem nós mesmos sabemos respeitar inteiramente no seio do nosso grande quintal. Ou seja, a presunção de que ocupamos um patamar mais alto na escala civilizacional é, por si, sintoma de menoridade intelectual. E é isso que impera quando alguém, sem questionar minimamente a complexidade disto tudo, proclama bem alto o ascendente moral de uma escala de valores em que se revê.
Editar deve ser, portanto, agir de acordo com estas noções. Não creio que isso tenha sucedido. A publicação dos cartoons foi legítima, já o disse, tal como é, para mim, primordial a liberdade que os autores tiveram para os fazer. Isso não me impede, porém, de pensar que houve um mau trabalho de edição, porque imprudente e sobranceiro.
Temos, pela liberdade de acção que a vontade nos confere, todo o direito de enfiar o braço num ninho de vespas enfurecidas, mas o bom senso, se o tivermos, determina que o não façamos. Os nossos governos não devem abdicar dos nossos valores, mas é verdade que a diplomacia pode, por vezes, implicar determinadas cedências (Galileu viu na vida um valor maior e retractou-se). Urge, portanto, que tenhamos consciência de que o outro, esse mundo que nos é estranho porque, também, temos dificuldade em compreender diferentes esquemas mentais, vê-nos a todos como braços de um só corpo. Todo o corpo corre, por isso, o risco de ser picado pelas vespas que só um braço atiçou, algo que um pouco de ponderação poderia ter evitado.