3 comments | domingo, setembro 09, 2007

Trago-vos um assunto relacionado com a minha actividade profissional, mas que, atendendo a que os frequentadores do blogue serão leitores de jornais, também cá terá cabimento. Tem a ver com a recorrente dúvida entre o uso de "islamita" ou "islamista". Para os cães de guarda da linguagem, só a primeira pode existir. No meu jornal, tal como em vários outros, estamos a usar a segunda quando nos reportamos a integralistas islâmicos, porque chegámos a essa conclusão depois de consultar quem do assunto percebe (de fundamentalistas religiosos, não de dicionários). Como esta questão passa a ser para mim uma espécie de guerra santa, passo a reproduzir o comentário que hoje enviei ao site "Ciberdúvidas":


«Creio que, por vezes, a problematização da língua elude alguns aspectos que deveriam ser tidos em conta, transformando dicionários e compêndios gramaticais em livros sagrados e levando filólogos ou linguistas a alcandorar-se a posições sacerdotais. Tal é notório no debate sobre o uso do vocábulo "islamista", designadamente na imprensa escrita. Tanto o jornal em que trabalho - o "Jornal de Notícias" - como o "Público" optam pelo uso de "islamistas" para designar integralistas islâmicos, sentindo eu o dever de aqui notar que não o fazem de ânimo leve.


«Tudo entronca numa problemática que, decerto, escapa aos fautores de dicionários e aos esclarecedores de dúvidas: a conceptualização em ciências sociais e humanas. Não querendo eu enveredar por dissertações sobre os caminhos metodológicos que traçam diferenças entre ciências ideográficas e nomotéticas, bastar-me-á salientar a importância de determinados vocábulos terem significações específicas. Se ao termo "islamita" é dada uma definição ambígua, podendo, em paralelo, ser usado como partidário do islamismo ou inserido na sinonímia de muçulmano, cria-se um problema que terá de ser ultrapassado pelas ciências que estudam estes assuntos.


«Ora, embora o debate não esteja encerrado nos fóruns das ciências sociais, devo notar que o "Jornal de Notícias", tal como, suponho, o "Público", optou pelo uso de islamistas depois de ouvir académicos que estudam estes assuntos, tendo em conta que "islamistas" não constitui uma aberração no processo de construção vocabular. Tudo parte do princípio - estabelecido no processo de conceptualização que vivem as ciências - de que o islamismo não é o Islão, mas sim aquilo a que poderemos chamar o "Islão político", concepção integralista em que religião e Estado (no sentido lato de organização política) são coincidentes, indissociáveis, inevitavelmente permeáveis entre si. É essa a concepção que redunda no estabelecimento de teocracias e que alimenta o fundamentalismo. Daí surge a necessidade do uso de islamista (um neologismo, seja) para designar aqueles que se integram no Islão político, necessariamente sectários, porquanto a ambiguidade de "islamita" (também sinónimo de muçulmano) pressupõe uma insanável fragilidade discursiva. Se está, ou não, nos dicionários, acaba por tornar-se o menor problema.


«A língua constrói-se a partir da necessidade, e espera-se, de filólogos e linguistas, a agilidade mental requerida por um idioma que se quer vivo e adaptado a contingências presentes e futuras. Tê-la-ão, decerto, pois sabem que, se o não fizerem e permanecerem fechados em torres de cristal, serão co-responsabilizados pela agonia da Língua Portuguesa.»

2 comments | sexta-feira, setembro 07, 2007




O pequeno filme que acabaram de ver (alguém os vê? alguém lê realmente este blogue?...) é extraído de um documentário sobre Pavarotti e é particularmente rico. Vemos Luciano na catedral de Modena, onde neste momento está em câmara ardente, cantando com o pai, Fernando Pavarotti, vemos imagens do espectáculo de estreia, em 1961 (Rodolfo, em La Bohème), vemos como ele fala com ternura desse tempo em que três tenores despontavam: ele mesmo, Plácido Domingo e o menos notório de todos, Jaime Aragall, que Luciano aponta como sendo o melhor dos três. Não era. Ponho em baixo Pavarotti e Aragall, ambos cantando a ária de Cavaradossi que abre a Tosca. A voz dita a diferença, como ontem notou a soprano (não consigo escrever "o soprano", como dizem os entendidos) australiana Joan Sutherland: "The quality of the sound was so different... You knew immediately that it was Luciano."





Luciano Pavarotti, Recondita armonia





Jaime Aragall, Recondita armonia

0 comments | quinta-feira, setembro 06, 2007

Existe no preconceito, essa bactéria que gera tantas purulências com notoriedade cultural ou cívica, uma clara incapacidade de contrariar a natureza, porque nada do que é humano a doma verdadeiramente. Luciano Pavarotti, enquanto cantor, voz, fenómeno universal, é essa natureza. O corpo, quiçá maltratado pelos excessos da gula, em especial, morreu hoje. A natureza, ensinou-nos Lavoisier, não se perde nem se cria: transforma-se em memória e perdura.


O preconceito, insistamos nele, surge de todos os lados, e talvez o mais nocivo seja o da aparente erudição, que anatematiza por regra os fenómenos globais e a popularidade, nunca detectando o que é verdadeira excepção. Nunca um cantor lírico foi tão popular ou global como Pavarotti, e isso é algo que as opiniões dominantes, nesse nicho minoritário que é a vida cultural, dificilmente perdoam. Não há problema nisso, porque nada riscam, mas causa fastio ver os que pretendem ler tudo, ouvir tudo e tudo ver, sobre tudo tendo opinião, cingindo a excelência ao soturno, ao minoritário, ao alternativo, ao intimista ou ao secreto.


Pavarotii foi um cantor de maiorias. Pelo tal preconceito, a minoria pensante sempre o pôs pelo menos um patamar abaixo de Enrico Caruso, mesmo que a comparação nunca possa ser feita com seriedade, o que a Luciano pouco importaria, de tal forma venerava o mestre, morto em 1921. Mas irrita que tal resulte apenas do preconceito ou, melhor dizendo, do pedantismo. Pavarotti esteve acima de todos os coevos (e por que não de Caruso?), justamente pelo que de inato havia naquela voz inconfundível, ou seja, pela natureza. Tendo o canto lírico (não confundam com “Bel canto”, por favor) evoluído, em boa parte, pela necessidade de projectar a voz perante a total ausência de sistemas de amplificação, é comum que algum artificialismo - ou esforço mal camuflado – transpareça das vozes. Com Pavarotti não era assim: abria a boca e a música nascia, porque para tal ele próprio nasceu.


Deixo três filmes, escolhidos do que há no YouTube. Não recuo muito ao periodo que desejava, mas sempre presto melhor serviço do que o que tenho visto nas televisões, que insistem nas imagens mais recentes, como a actuação do tenor na abertura dos Jogos Olímpicos de Turim, no ano passado, em que a voz, embora boa, está já afectada pela idade e pela doença. Escolhi “Nessun dorma”, porque, embora não quisesse ter enveredado pelo óbvio, a ária de Puccini (da ópera Turandot) é absolutamente indissociável do cantor. A interpretação é do espectáculo nas termas do imperador Caracalla, em Roma (1990), o primeiro que juntou os “Três tenores”, de que também escolhi “Rondine al nido”, de Vincenzo de Crescenzo, porque a canção napolitana teria de estar representada. E volto a Giaccomo Puccini, com ópera pura e dura, isto é, com Pavarotti a cantar “Che gelida manina”, ária de “La Bohème”, no palco do mítico Teatro alla Scala, em Milão (o registo é de 1979, e a Mimi que permanece calada é a romena Ileana Cotrubas).






Giacomo Puccini/Giuseppe Adami, Nessun dorma





Vincenzo de Crescenzo/L. Sica, Rondine al nido





Giacomo Puccini/Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, Che gelida manina