0 comments | quinta-feira, setembro 06, 2007

Existe no preconceito, essa bactéria que gera tantas purulências com notoriedade cultural ou cívica, uma clara incapacidade de contrariar a natureza, porque nada do que é humano a doma verdadeiramente. Luciano Pavarotti, enquanto cantor, voz, fenómeno universal, é essa natureza. O corpo, quiçá maltratado pelos excessos da gula, em especial, morreu hoje. A natureza, ensinou-nos Lavoisier, não se perde nem se cria: transforma-se em memória e perdura.


O preconceito, insistamos nele, surge de todos os lados, e talvez o mais nocivo seja o da aparente erudição, que anatematiza por regra os fenómenos globais e a popularidade, nunca detectando o que é verdadeira excepção. Nunca um cantor lírico foi tão popular ou global como Pavarotti, e isso é algo que as opiniões dominantes, nesse nicho minoritário que é a vida cultural, dificilmente perdoam. Não há problema nisso, porque nada riscam, mas causa fastio ver os que pretendem ler tudo, ouvir tudo e tudo ver, sobre tudo tendo opinião, cingindo a excelência ao soturno, ao minoritário, ao alternativo, ao intimista ou ao secreto.


Pavarotii foi um cantor de maiorias. Pelo tal preconceito, a minoria pensante sempre o pôs pelo menos um patamar abaixo de Enrico Caruso, mesmo que a comparação nunca possa ser feita com seriedade, o que a Luciano pouco importaria, de tal forma venerava o mestre, morto em 1921. Mas irrita que tal resulte apenas do preconceito ou, melhor dizendo, do pedantismo. Pavarotti esteve acima de todos os coevos (e por que não de Caruso?), justamente pelo que de inato havia naquela voz inconfundível, ou seja, pela natureza. Tendo o canto lírico (não confundam com “Bel canto”, por favor) evoluído, em boa parte, pela necessidade de projectar a voz perante a total ausência de sistemas de amplificação, é comum que algum artificialismo - ou esforço mal camuflado – transpareça das vozes. Com Pavarotti não era assim: abria a boca e a música nascia, porque para tal ele próprio nasceu.


Deixo três filmes, escolhidos do que há no YouTube. Não recuo muito ao periodo que desejava, mas sempre presto melhor serviço do que o que tenho visto nas televisões, que insistem nas imagens mais recentes, como a actuação do tenor na abertura dos Jogos Olímpicos de Turim, no ano passado, em que a voz, embora boa, está já afectada pela idade e pela doença. Escolhi “Nessun dorma”, porque, embora não quisesse ter enveredado pelo óbvio, a ária de Puccini (da ópera Turandot) é absolutamente indissociável do cantor. A interpretação é do espectáculo nas termas do imperador Caracalla, em Roma (1990), o primeiro que juntou os “Três tenores”, de que também escolhi “Rondine al nido”, de Vincenzo de Crescenzo, porque a canção napolitana teria de estar representada. E volto a Giaccomo Puccini, com ópera pura e dura, isto é, com Pavarotti a cantar “Che gelida manina”, ária de “La Bohème”, no palco do mítico Teatro alla Scala, em Milão (o registo é de 1979, e a Mimi que permanece calada é a romena Ileana Cotrubas).






Giacomo Puccini/Giuseppe Adami, Nessun dorma





Vincenzo de Crescenzo/L. Sica, Rondine al nido





Giacomo Puccini/Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, Che gelida manina