0 comments | domingo, agosto 12, 2007

Outra maneira que não esta seria impensável, aqui, para homenagear Miguel Torga, nascido há cem anos entre fragas, dores e cavadores. Porque o poeta - nunca senão como poeta se assumiu na vida literária - foi um pioneiro dos blogues, nesse Diário que foi publicando, ao longo de sessenta e um anos e dezasseis volumes. Daí que este assomo de blogue tenha optado, sem minucioso e atempado planeamento, por assinalar a data através da reprodução de alguns posts saídos do punho desse transmutado Adolfo Correia da Rocha.


Ao todo, seis posts desta Fonte das Virtudes, despidos da ambição com que Torga, num projecto que a longevidade permitiu concretizar, traçou os seis dias de "A criação do mundo". Mas seis posts com alguma relevância, este redigido, os cinco primeiros copiados.


Os quatro primeiros posts estão explicados, três foram escritos noutros dias 12 de Agosto, do alvor ao crepúsculo do poeta, o outro, a propósito de Antero de Quental, mostra o que Torga pensou sobre isto dos centenários.


O quinto é a reprodução de um poema dado à estampa no "Diário", que, sem mais, poderá parecer uma escolha bizarra. Mas tem uma razão de ser, na medida em que foi um dos meus primeiros, se não o primeiro, contactos com Miguel Torga. Além dos textos dos "Bichos" que lia com o meu Pai, esta História Antiga fazia parte de um dos meus livros de leitura da escola primária, e, um dia, eu e mais um ou dois colegas fomos postos a lê-lo, como jograis, numa festa de Natal. Mais do que o episódio bíblico da matança dos inocentes, a única leitura ao alcance dos meninos da primária, devemos agora reparar no que significou, em 1937, escrever estes versos, sintoma de uma esperança em justiça que tarda mas não falha.


E acabo este sexto post de homenagem a Miguel Torga com um pequeno episódio que me é chegado, suficiente para ver que o grande escritor era, também, um homem como qualquer outro, particularmente agarrado a coisas mundanas, como aquilo com que se compram melões e outras refeições.


Na segunda metade da década de 1940, o meu Pai, estudante de Românicas em Coimbra, fez parte, entre outras coisas, da Sociedade Filantrópica Académica, organismo que prestava apoios a estudantes carenciados, como a concessão de bolsas, entre outros. Ora, houve uma ocasião em que a Filantrópica conseguiu levar a Coimbra a companhia do Teatro Nacional, que levava à cena uma peça de Miguel Torga, provavelmente "Mar". Dados os objectivos do espectáculo os rapazes que o organizavam foram ao consultório do dr. Adolfo Rocha, otorrinolaringologista, pedir-lhe que renunciasse aos direitos de autor da representação que caberiam ao alter-ego Miguel Torga, algo a que ele prontamente anuiu.


Ora, deu-se, afinal, o caso de Torga cobrar mesmo os direitos de autor, porque deixar escapar dinheiro talvez fosse coisa que lhe doesse. Mas, depois, arrependeu-se, e, durante alguns tempos, quando o meu pai, um garoto de Letras, entrava na Confeitaria Central, Miguel Torga, já então um consagrado a nível nacional, mergulhava sempre a cabeça nas golas do casaco.


Na rua, a mesma coisa. Enterrava o chapéu, levantava as golas, mudava de passeio e estugava o passo. Um outro estudante, numa dessas situações, encontrou a metáfora adequada:


- Lá vai um porco-espinho a corta-mato!