| quarta-feira, abril 28, 2004

A ideia não antecedeu o surgimento deste blogue, foi-se formando depois e só agora começa a ganhar corpo. Uma vez por outra – gostaria que fosse semanalmente, mas não poderei garanti-lo –, haverá aqui apontamentos sobre lugares da cidade do Porto. Lugares com história, histórias de lugares do Porto, a começar pela Fonte das Virtudes, que a isto dá título. Excepcionalmente, gostava de associar a estes textos fotografias dos locais, mas não sei como se faz. Paciência.
2004.04.29 - Entretanto, como já terão reparado, aprendi. Aqui fica o agradecimento a todos os que ajudaram a reduzir o meu grau de ignorância.

FONTE DAS VIRTUDES

A mancha verde, a rasgar o casario, tem o seu quê de oásis. Um vale desenhado em socalcos, onde sem esforço podemos imaginar vinhedos durienses, de tal forma que até o Douro ali está, pouco adiante, reflectindo as luzes da tardinha. Estamos num sítio a que a toponímia pôs título de Passeio das Virtudes, em tempos lugar de chiques deambulações, hoje miradouro partilhado por velhos com baralhos de cartas e garotos com sprays de tinta. Estamos naquilo a que se chamava morro do Olival, em locais por onde passava a muralha fernandina, na encosta que se vira para Poente. Os portuenses estarão, em princípio, familiarizados com o sítio, mesmo ao lado da casa que alberga a emblemática Cooperativa Árvore. Esse passeio é escorado por impressionante paredão – não o imaginamos lá de cima –, erguido, tal como a fonte, no século XVII, e sujeito ao longo dos tempos a diversas obras de consolidação. Estando nós no jardinzito a que já chamámos Passeio das Virtudes, teremos de nos aproximar do parapeito e olhar para baixo para ver o chafariz, ao fundo de larga rua asfaltada que torna o acesso fácil. É melhor, portanto, que nos aproximemos. Da fonte, digamo-lo já, não cai uma gota, mas, se nos aproximarmos, ouvimos facilmente o murmulhar da torrente em canalizações subterrâneas, água que, antes, brotava em abundância de várias minas escavadas na rocha. Havia, nas cercanias, umas relíquias do mártir Santo Estêvão, certamente milagrosas, e terá sido por essa circunstância que a crença popular atribuiu às águas idênticas propriedades, ou seja, virtudes, fossem elas terapêuticas ou profilácticas. No século XVII, a fonte que ali se ergueu era conhecida em todo o reino, pela monumentalidade. Claro que, nesses finais da centúria de seiscentos, Portugal era já o que hoje é, país periférico sem grandes riquezas, e todos sabemos que basta entrar em Espanha para que o nosso património arquitectónico assuma, pelo processo de comparação, a dimensão que realmente tem. É uma interessante fonte barroca, onde, quase ao nível do chão, a água saía das bocas de duas carrancas. Ao centro da decoração, perfeitamente simétrica, há uma lápide, mal conservada (agora ilegível), abaixo de um nicho vazio, este ladeado por duas torres. No nicho esteve uma imagem de Nossa Senhora (das Virtudes, naturalmente), que, em conjunto com os castelos, formava as armas do Porto. Terá uns dez metros de altura, a fonte, e, se lhe virarmos as costas, deslumbramo-nos com a paisagem. O dito vale, a tal mancha verde no casario, desemboca em Miragaia, frente ao conhecido edifício da Alfândega Nova, onde fizeram uma coisa chamada Museu dos Transportes, quando teria tido toda a lógica se o tivessem reconvertido num digno museu da cidade, algo que teima em não existir, por inépcia dos políticos, resumindo-se a núcleos dispersos, como o recentemente inaugurado Museu do Vinho do Porto. Mas isso são contas de outro rosário. Em 1789, o padre Agostinho Rebelo da Costa, um dos primeiros historiadores do Porto, elegia o local como um dos mais aprazíveis da cidade, de onde se podeia avistar, “de hum só golpe, vista de Cidade, de Mar, de Rio, Navios, Montes, Campinas, Quintas e Palácios”. E, de certo modo, continua a ser. Só é pena que da fonte já não corram as águas milagrosas, em cujas virtudes poderíamos, ainda hoje, mergulhar as nossas misérias.