| domingo, abril 18, 2004

Há dias, quando trepava ao Morro da Sé para dar uma volta pelo locais onde nasceu o Porto, subiu-me à cabeça a primeira memória que tenho de um historiador da Invicta. Não dos mais importantes, é certo, mas, sem dúvida, dos mais apaixonados. Como ultra-apaixonado que era, o já desaparecido Xavier Coutinho, padre e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não seria, provavelmente, um estandarte do rigor. Mas do que me lembro é de vê-lo na televisão, quase exaltado, a dizer que “o Porto é a cidade mais linda do Mundo!”. Todos sabemos o quão relativas são estas afirmações, fala-se da cidade como das mães e, quando vemos outros a fazê-lo, compreendemos, com ternura, a dimensão do desconto que deve ser dado. Mas quando vamos ao Terreiro da Sé, largo criado, na década de 1940, à custa do sacrifício de muito casario e ruelas que faziam o labiríntico embrião da cidade, sentimos um enorme desejo de que assim seja: a mais bonita. E acreditamos nessa ilusão quando nos aventuramos pelas ruelas. Quando espreitamos a antiquíssima e estreitérrima Rua dos Redemoinhos, mesmo por trás da catedral, que um portão fecha ao usufruto por toxicodependentes. Quando descemos as escadas até à igreja dos Grilos (primeiramente de S. Lourenço dos Jesuítas) e, daí, descemos pela Rua de Sant’Ana, passamos pelos restos do arco e pensamos em Garrett, imaginamos o furor dos artífices na Bainharia, julgamos estar a reviver o bulício na Cruz do Souto. E por aí fora, num casario que parece não ter fim, num emaranhado de ruas, estreitas e íngremes, que nos fazem viajar no tempo. Porém, para que façamos essa viagem, não podemos abrir demasiado os olhos. É que, apesar da propagandística elevação do centro histórico a património da Humanidade, continuamos a ver um mar de edifícios degradados, continuamos a dar de caras com os meandros do pequeno tráfico, sentimos receio de por ali andar se formos sozinhos. É claro que uma cidade, para resistir, tem de ter gente dentro. É claro. Mas o centro histórico do Porto começou a degradar-se quando os endinheirados foram partindo, ao longo de remotos tempos, para outras paragens mais arejadas, quando os prédios começaram a ser divididos – para fácil rentabilização – em pequenos tugúrios, quando a gente que aí passou a viver começou a ser esquecida. Revitalizar implicará, sem atropelos aos direitos de cidadania de quem lá está, repovoar, revitalizar, reconstruir, restaurar. Aqui tão perto, o centro histórico de Santiago de Compostela (bem mais antigo) é um exemplo, tal a forma como está preservado, habitado, dinâmico e visitável. O que dói é que, aos olhos de sucessivas gerações de politiqueiros, o salvamento daquilo que é realmente único não constitui prioridade. Recuperam-se umas casas, aqui e ali, mas é sempre infinitamente mais o que fica por fazer. E deita-se dinheiro fora, por toda a parte, em falsas benfeitorias que apenas resultam da perspectiva de votos que acarretam. Enquanto a memória, o nosso principal alicerce enquanto comunidade, povo, pátria ou nação, vai sendo desbaratada. No Porto, e apenas no que ao património edificado diz respeito, estas preocupações vão muito além da Sé. Estendem-se aos morros da Cividade e do Olival, descem à Ribeira e a Miragaia. Ao cidadão comum, mais preocupado com as mensalidades do carro, da casa e do crédito ao consumo com que pagou quinze dias em Benidorm, nada disto importa muito. A questão é que a política devia atrair cidadãos menos comuns, ou seja, competentes, sérios, com visão. Este problema é geral, não do Porto. Mas tal não serve de consolo.