0 comments | sábado, fevereiro 18, 2006

Deixei aqui, há dias, a promessa de escrever sobre essa ideia, a meu ver desnecessária e potencialmente perniciosa, de criar uma "Ordem dos Jornalistas". Uma ideia que nada tem de novo, que vai pairando sobre a classe há muito tempo. Há bocado, numa volta pelos blogues, vi que há, até, fora da classe, quem se preocupe em entrar na guerrilha contra o Sindicato dos Jornalistas, ignoro se por inocência ou se por sermão encomendado. Como a Fonte das Virtudes não é sobre jornalismo nem para jornalistas, vou tentar não me alongar em excesso sobre o assunto.

Coloca-se, desde logo, a pergunta sacremental: a quem pode interessar a criação da dita ordem? Há sempre a quem estas coisas interessem, nem que seja àqueles que, por mera vaidade, vejam nisso uma espécie de elevação do estatuto. E esses são muitos, por mais idiota que tal motivação possa parecer. Mas é possível que haja, também, os que nisso vêem vantagens pessoais de outra ordem. É questão de ver quem têm sido os defensores mais acérrimos da ideia, ao longo dos anos, e procurar um fio condutor. Não fiz esse trabalho, mas, assim de cor, ocorre-me que vários apologistas da ordem acumulam as funções de jornalista com a docência em cursos de jornalismo. Ora, num simples exercício especulativo, isso poderá levar-nos ao entendimento de que uma das mais apetecíveis funções da ordem, a haver ordem, é regular o acesso à profissão. E se dois e dois ainda forem quatro...

Escrevi aqui, a 4 de Janeiro último, que "o jornalismo asséptico é mau jornalismo, e a segurança da opinião pública reside na diversidade dos olhares". Essa é uma ideia que se enquadra, perfeitamente, no problema de que hoje me ocupo. Existe, entre muitos dos que ensinam jornalismo, a ideia de que, para se aceder à profissão, as licenciaturas que ministram devem ser prerrogativa. Nada tenho, evidentemente, contra os cursos de jornalismo. Até subscrevi, há tempos, uma petição em defesa da manutenção dos ditos nos curricula académicos portugueses. Porém, fazer jornalismo não é o mesmo que exercer medicina, advocacia ou arquitectura. A vida do jornalismo depende da tal diversidade dos olhares, e essa diversidade resulta da individualidade de cada um, evidentemente, mas também das diferentes origens, dos distintos percursos formativos, da universalidade das redacções. Contrariar isso é ir ao encontro do pensamento único e, consequentemente, aniquilar a liberdade de Imprensa.

Há, depois, aqueles que aparentam preocupar-se muito com as questões da deontologia, pedindo mecanismos de controlo, órgãos fiscalizadores, mecanismos de penalização. Há-os dentro e fora da classe. A esse respeito, quero notar que o jornalismo, como todos saberão, toca de forma muito própria a emotividade das pessoas, gera ódios entre pares, presta-se demasiado à subjectividade das avaliações que são feitas. Ou seja, há um risco muito elevado de constituição de elites de poder, nessas desejadas estruturas de controlo, que facilmente podem assumir decisões arbitrárias, em função de uma qualquer espécie de interesse. Ora, a deontologia, em jornalismo, é obrigação primeira do jornalista, e os princípios éticos dizem respeito à estatura moral de todo e qualquer cidadão. Há atropelos? Claro que há. Muitos. Mas muitas são, também, as razões que obrigam a alguma prudência na análise destas questões.

Queixam-se muitos cidadãos de que os jornalistas prevaricadores gozam de total impunidade. Se assim for, a impunidade é comum a todos os outros prevaricadores, pois são inúmeros os mecanismos legais que regem o jornalismo (a Lei de Imprensa, o Estatuto do Jornalista, a Constituição, o Código Penal...). Ou seja, ou é a lei que não funciona ou são as pessoas que a fazem não funcionar. Mas há outro aspecto que não é despiciendo: fazer jornalismo, salvo escassas excepções, decorre do vínculo a uma entidade patronal, as empresas de comunicação social, elas mesmas um mecanismo de controlo e condicionamento da actividade. Por um lado, há mecanismos de responsabilização de sobra. Por outro, nenhuma empresa quereria estar sujeita a que os seus trabalhadores mais importantes (acreditemos que os jornalistas são o elemento mais importante na feitura de um jornal) fossem regulados por uma entidade externa, que pusesse e dispusesse da aptidão para trabalhar dos seus funcionários. Seria mais um passo, está bom de ver, rumo à precariedade laboral.

As ordens profissionais são, a meu ver, resquícios do estado corporativo de antanho Se as profissões liberais lidam bem com isso, óptimo para elas. Mas a liberdade de Imprensa decorre, em grande parte, da liberdade individual, em especial a liberdade de pensar, de discernir. A ideia de juntar todos num corpo é, portanto, contrária a esse espírito. O que não obsta, naturalmente, a que os jornalistas se organizem. Quando as pessoas criticam o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, querendo com isso dar ideia de algo que vai mal com a classe estão, desculpem-me a franqueza, a ser um bocado obtusas (claro que não, claro que o que querem é descredibilizar, abrindo outros caminhos.... mas façamos de conta que são obtusas). Porque, como o nome do referido órgão indica, é parte integrante de uma associação sindical, ou seja, apenas fala para os associados, como o sindicato, em tese, apenas representa os associados, se bem que tenha vasta história de lutar por todos, incluindo os que não querem ser sindicalizados. Mas não é uma organização de toda a classe, não é de inscrição obrigatória, não detém poder sobre os que a integram. Quem não gosta não entra, ou, claro, é livre de fundar outro sindicato (nada na lei faz com que um sindicato detenha exclusividade), ou ainda, se entender, um clube recreativo, uma banda filarmónica, uma confraria báquica ou uma comissão promotora de jogos florais.

Esta conversa aborrece-me um bocado, pois o cheiro a podre sente-se à distância. A uma grande distância. Por isso, e como já me estendi em demasia, deixo-vos o slogan de há alguns anos.

SOU JORNALISTA. NÃO ME METAM NA ORDEM!