Eu não sou de Gaia, mas sei onde fica a Rua da Rasa. Como se não bastasse, sei que aí fica o campo do Vilanovense. Mais: sei de uma história, ali passada, que vem muito a propósito. Ei-la.
O jogo era como qualquer outro, naquele campo acanhado, degradado, antiquado. Um campo alheio ao país dos estádios, distante das grandes noites europeias na tê-vê, mas íntimo das quentes tardes de pelejas secundárias. Era uma partida vulgar, o Vila contra os outros, o árbitro sempre culpado de todos os males, do pecado original ao golo que caiu mal no goto, da peste negra ao negro marcador. Ora, enquanto o jogo decorria, o homem de preto, que talvez vestisse de amarelo, foi filho de beltrana e beltraneja, chifrudo e rabudo. Foi remeloso, manhoso e aleivoso. Das bancadas, despejaram, sobre cada apitadela em desfavor dos da casa, todas as machadadas que o experimentado léxico lhes permitia.
E o juiz, estóico, indiferente ao chasco, surdo aos gritos do palavroso chavascal, apitava o jogo. Falta para lá, palavrão para cá, a psique centrada na missão de impor as leis. As do jogo, lá estavam três polícias para fazer respeitar as outras. Ora, andavam eles nisto quando um bacano qualquer, incógnito num canto da bancada, soltou bem alto o impropério:
_ Ó choninhas!...
Nem apitou. O árbitro esqueceu o jogo, saltou o murete, pulou os degraus quatro a quatro e pespegou valente murraça no impertinente adepto. Limpou a honra.
Mostra-nos esta história que, por vezes, o pior insulto não é o mais obsceno, apenas aquele que, por insondáveis motivos, desperta a fera que o ofendido quis manter adormecida. O homem aguentou tudo, tudo, tudo. Mas "choninhas" é ofensa que não se leva para casa, é ferida profunda, a lavar com sangue. Resolveu a questão ali, sem espinhas, sempre há coisas que um homem não pode permitir.
Ora, parece-me que a mais mediática cabeçada dos últimos tempos tem qualquer coisa a ver com isto. O homem jogou anos em Itália, Lippi conhece-o, os jogadores conhecem-no. Houve ali qualquer coisa que o fez dar meia volta, puxar a culatra atrás e espetar a testa no peito do ofensor. É essa, portanto, a grande dúvida que nos sobra do Mundial da Alemanha: que terá Materazzi dito a Zidane?