0 comments | domingo, outubro 29, 2006

Numa semana, foram dadas à estampa, na Imprensa portuguesa, duas crónicas* de enorme importância também para a blogosfera, mas, especialmente, para o jornalismo. A de José Pacheco Pereira, no “Público”, e a de Miguel Sousa Tavares, no “Expresso”. A primeira suscitou rasgados elogios na blogosfera, a segunda nem por isso. Concordo com ambas, de um modo geral. A de JPP é sobre o jornalismo de sarjeta, invasor da privacidade em medidas que transcendem o interesse público. Profundo conhecedor que é da utilização dos media para fins políticos, desmonta com assinalável precisão uma não-notícia, que juntou o picante do boato ao (re)lançamento do debate de um tema fracturante (é moda dizer assim). A de MST, partindo da história pessoal do cronista, levanta o problema da impunidade que o anonimato proporciona, da forma como os blogues acentuam o problema e da irresponsabilidade com que agentes do jornalismo amplificam as calúnias. Interessa-me bem mais a segunda.

Não diria o erro, mas a fragilidade da crónica de Miguel Sousa Tavares, intitulada “Cybercobardia”, está na preocupação dominante – absolutamente legítima e compreensível – de defesa da honra. Tal conduz a uma inversão dos factores, em que o destaque cabe quase todo à demonização da blogosfera e da Internet, numa estrutura que desagua no verdadeiro problema, mas de forma algo discreta, no remate final da crónica: “Fiquei a saber, e não sabia, que os blogues, mesmo anónimos, são uma fonte de informação privilegiada e credível para o nosso jornalismo”.

Presumo que a calúnia será tão antiga como o processo de hominização. Ao longo dos tempos, evolui. E tem sempre o rosto escondido: intrigas segredadas em corredores soturnos, cartas e outros escritos apócrifos, telefonemas de gente que não se identifica, notícias em que a informação não é devidamente verificada através do cruzamento e crítica de fontes. Neste tempo em que estamos, a vida, e não apenas no capítulo das ideias, está em permanente confronto com o inelutável poder da Internet, do alucinante progresso tecnológico, da quantidade de informação com que nos confrontamos. Estamos num ponto em que tudo é demasiado rápido, sentimo-nos ultrapassados a cada segundo que passa. Mas é este o tempo que vivemos. A ele teremos de nos adaptar, pois nunca o tempo se adaptou às pessoas. Desde sempre, porque a isso leva a natureza humana, ou, melhor, a natureza de muitos seres humanos, o progresso teve os seus versos de medalha. Uma descoberta benéfica pode sempre resultar no caminho para a perfídia. Por que haveria a Internet de escapar a isso? Mas o mal não é a Internet. O mal tem sempre forma de gente.

Diz MST que os blogues são “o paraíso do discurso impune, da cobardia mais desenvergonhada, da desforra dos medíocres e dessa tão velha e tão trágica doença portuguesa que é a inveja”. Serão, até que outro meio se torne mais propício. Mas nunca se deixou de escrever cartas por causa das cartas caluniosas, nunca se deixou de telefonar por causa dos telefonemas anónimos, nunca a evolução da tipografia foi travada por tantos e tantos escritos apócrifos caluniosos terem passado, ao longo dos tempos, a letra de forma. Sinceramente, não acredito que MST não leia blogues, “tout court”. Quando ele diz que apenas lhe interessa, na Internet, “o correio electrónico e a consulta de ‘sites’ informativos”, está a admitir tudo e mais alguma coisa, justamente a infinidade de coisas que podem colocar-se nesse bojudo e indefinido saco dos sites informativos.

A Internet, lato sensu, e os blogues, stricto sensu, são como o resto da vida. Temos de criticar, compreender, escolher. O crime está, quase sempre, um ou vários passos à frente das técnicas de investigação, porque estas são mais terapêuticas do que profilácticas. Os períodos de transição, como este que ainda atravessamos, no que respeita à sociedade dita da informação, apanham-nos sempre desprevenidos. Ultrapassar isso faz para do processo colectivo de crescimento, como sempre fez.

Este meu blogue tem assinatura. E só admito os escritos sem nome quando não se destinam à calúnia cobarde (lembram-se do Pipi? O anonimato era necessário, e não veio daí mal ao mundo, pelo contrário). Fugindo ao exemplo de outros cantos da blogosfera portuguesa, não houve na Fonte das Virtudes referência ao blogue sem rosto feito para caluniar MST. Porque as acusações, muito graves, não estavam minimamente validadas. Se o assunto me interessasse por aí além, teria de esperar que alguém credível o desmentisse ou confirmasse (demonstrando por que o fazia), ou, então, meter mãos à obra e confrontar os textos. Se bem que é estúpido pensar que MST, em cujos defeitos não se inclui a falta de inteligência, seria capaz de incluir numa blibliografia as obras que eventualmente tivesse copiado. Porém (também eu dei uma volta muito grande para chegar ao que realmente me parece importante), essa estupidez varreu a Comunicação Social portuguesa. Mais um de tantos episódios que envergonham os jornalistas minimamente lúcidos.

Fazer jornais é uma actividade humana. Como tal, não está isenta de defeitos. A deontologia é batalha permanente, num mundo extremamente complexo, movido por uma infinidade de factores, que vão das lógicas comerciais (os jornais fazem-se para ser vendidos, não sejamos ingénuos) à precariedade de postos de trabalho ou a repercussões que esta ou aquela atitude possam ter na construção de carreiras pessoais. Parece claro, porém, que está a ser trilhado, a alegremente irresponsáveis passos, o caminho da auto-destruição. Esta irresponsabilidade deriva da concorrência, é claro, pois todos querem as suas “cachas”, todos querem passar a perna aos restantes títulos. Mas resulta, também, da margem de acção que é dada por uma opinião pública pouco exigente (até ver...), que atribui à Comunicação Social o papel de justiceira num país supostamente entregue à bicharada (MST é comentador semanal no noticiário televisivo que mais faz isso).

Os jornais nasceram, muitas vezes, de impulsos de cidadania. Mas também, como ainda hoje se verifica, de estratégias montadas para fins muito específicos, políticos ou económicos. Não é um fenómeno português. E poderá parecer um caminho sem retorno, no sentido em que o tendencial aumento dos níveis de exigência dos públicos resultará no afastamento destes. Neste capítulo, prefiro ser optimista. O caminho da Liberdade passará sempre por uma Comunicação Social responsável, responsabilizável e responsabilizadora. Não pelo somatório de liberdades individuais, como os blogues, porque não há no ser humano a capacidade de ler tudo e fazer a síntese.

O aumento dos níveis de exigência é, parece-me, a única forma de pôr fim a essa peste que é o anonimato impune. Dela virão todos os benefícios para quem lê, mas também para quem escreve.

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* A crónica de Pacheco Pereira está publicada no Abrupto, sob o título "A degradação da privacidade e da intimidade"; para a de Miguel Sousa Tavares não posso fazer link, pois está no site do "Expresso", apenas para utilizadores-pagadores.

0 comments | sábado, outubro 28, 2006

Quero sempre que o benfica perca, tanto como que o F.C. Porto ganhe. Tendo, há pouco, sucedido as duas coisas em simultâneo, no mesmo campo, a época fica já meio ganha. Adriaanse nunca compreendeu isso, o que tirou quase todo o prazer ao título da época passada. Os executivos traçam metas e raciocinam em termos de eficácia. Não sentem. Assim fez o executivo holandês, que somou mais pontos do que os outros. Mas esse futebol das contas finais, menorizador das paixões dos adeptos, sabe a pouco. Mesmo com aquela segunda parte merdosa, depois de termos pensado na goleada, comemos os gajos. E futebol é isso. É o pecado da gula.

0 comments | quinta-feira, outubro 26, 2006


Para acordar os espíritos, A Cavalgada das Valquírias, de Richard Wagner (Berliner Philharmoniker, James Levine).

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Foto de POS
Torre dos Clérigos, Porto

Se dúvidas tinha, poucas eram. Perdi-as ao assistir ao debate sobre o programa de entretenimento “Grandes portugueses”. Um bom debate, por sinal, na medida em que deu para perceber melhor o que o programa significa, seja ou não um jogo sem importância. Claro que não voto em ninguém. Não quero. Nem sei em quem poderia votar, pois essa ligeireza de dizer “é grande” só é aplicável ao F.C. Porto. Prometo voltar ao assunto, partindo do confronto entre Luís Reis Torgal (sistematicamente silenciado pela frenética Maria Elisa, porque estava dizer coisas importantes mas incómodas para o espectáculo) e José Hermano Saraiva, que foi fazer a defesa de Oliveira Salazar (nada de surpreendente) e manter a aura de grande divulgador da História, quando qualquer pessoa minimamente informada (e eu sou pouco informado) compreende que o senhor sempre foi o recordista nacional das tontarias históricas.

Além de Reis Torgal, também Eduardo Lourenço (sempre notável, mas, no caso, preocupado em não melindrar os anfitriões) e Ricardo de Araújo Pereira contribuíram para que o programa fosse mais do que propaganda. Lídia Jorge e Joana Amaral Dias também o fizeram, mas só episodicamente. O resto? Todos grandes tugas, em tudo o que tuga possa significar.

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PS - Quando vi, há tempos, a Torre dos Clérigos empacotada numa grade de cerveja, fiquei horrorizado. Ainda estou. Pensei logo "tenho post" (a vida de blogueiro é assim), mas não tinha a máquina fotográfica nesse momento e adiei a coisa. Entretanto, Manuel Correia Fernandes escreveu superiormente sobre o assunto, no JN, e perdi a vontade. Vários blogues, depois, pegaram no assunto, mais ainda a perdi. Mas pronto, cá fica.

8 comments | quarta-feira, outubro 25, 2006

Eu tinha catorze anos quando o meu Pai partiu. Tantos quantos tenho agora, pois fomos separados num hoje que em mim vive a cada segundo, cravado no coração e rasgado na alma, esse vinte e cinco de Outubro de há vinte e cinco anos.

Mesmo quando mais que anunciada pelos negros augúrios da doença, a morte é algo para que nunca estamos preparados. Muito menos quando temos catorze anos. E não sei, agora, o que teria sido a vida se a vida então não se interrompesse, para recomeçar a passos hesitantes. Apenas que diferente. Muito. Mas não sei como. Nem quero.

De algum modo, sei lá se metafísico ou apenas emocional, o meu melhor Amigo não deixou de me acompanhar. Faltaram os conselhos, o amparo, a palpável presença, o carinho de um abraço, a lição dada no momento certo. Mas, acredito, nunca deixou de caminhar a par das minhas alegrias e misérias, de ser solidário com decisões e tropeções. Não nos deixaram crescer juntos. Nunca debatemos ideias, no sentido em que o fazem os adultos, quando julgam haver muita importância nas coisas que os preocupam. Alguma coisa tive de crescer, claro, sempre na esperança de que esse farol, apagado à vista, continuasse aceso no meu coração. Continuou. E lá permanece, mesmo quando me falta a lucidez ou a pureza de espírito necessárias para que o veja.

Queria honrar o meu Pai nestas linhas, que não desejo demasiadas. Mas temo não ser possível, sou demasiado pequeno para tão importante propósito. Queria falar da inteligência desse grande homem, desse homem bom, culto, corajoso, vertical... Mas as memórias deste menino de catorze anos são um turbilhão difuso, fortes mas sempre convergentes no mais simplesmente complexo dos conceitos: o meu tão querido Pai.

Atraiçoado, lutou heroicamente contra a doença. Acredito que conseguiu prolongá-la por seis anos de dor física, não tão crua, decerto, como a que lhe ia na alma. Não desistiu nunca, creio que por nossa causa, creio que para nos deixar não a vida descansada, que isso é coisa vedada aos professores, mas para nos garantir o princípio de um caminho que pudéssemos trilhar.

Desde sempre me habituei a ouvir que tenho a cara dele, algo que cria em mim um misto de orgulho e receio de nunca estar à altura. Éramos grandes companheiros. Como era bom quando entrávamos no carro, quando ele dizia “vamos onde o nariz nos levar” e o nariz nos levava ao mar, a uma serrania, à busca de coisas simples, ao belo da natureza, ao belo da criação humana. Éramos muito próximos. Não tive tempo de ser um filho rebelde, não sei se o seria noutras circunstâncias, mas sei que ele, enquanto pôde e conseguiu, quis viver os dois filhos que pôs no mundo, ambos tardios, eu o mais novo. Partiu há vinte e cinco anos. “Adeus” foi a última palavra que me disse. Só compreendi que era a despedida – estúpido que sou – quando soube que não voltaria a abraçá-lo, a receber o abraço dele.

Queria honrá-lo com estas poucas linhas. Não consigo. Sei pouco e pouco posso. Só aspiro a honrá-lo com o que faço da vida. Poderei falhar, reconheço, mas tentarei sempre. Chama-se António Simões Veríssimo, nada me orgulha mais do que ser filho dele.

0 comments | terça-feira, outubro 24, 2006

Foto de POS

0 comments | domingo, outubro 22, 2006

Palmas para o que a Helena escreveu há pouco sobre a questão do Rivoli, desancando, com firmeza e acutilância, essa fraude intelectual que é Pacheco Pereira. Digo fraude não para menorizar os méritos do senhor nas matérias do espírito, que serão muitos, mas porque reproduz, para as elites, aquilo que os populistas, que tanto critica, fazem com as massas. Sobre a muita vaidade que o caracteriza pouco terei de dizer, basta olhar para a estrutura do afamado blogue que mantém, um inconsequente jogo de sedução aplicado a esse imenso rebanho de aduladores que o têm por referência. Apesar de ser do Porto e ostentar os apelidos de uma antiga família da cidade, nada sabe do que o Porto é. Mesmo nas coisas básicas, como quando publicou uma fotografia de S. João Novo, pondo na legenda que era a igreja de S. Francisco (a coisa é ainda mais risível, porque os dois templos ficam perto da Rua de Belomonte, onde ainda hoje vemos a velha casa da família Pacheco Pereira).

Bom, estou a estender-me e a escapar ao meu objectivo. Parte está cumprida, já remeti os leitores para o referido post. Falta o resto: como não há lá link para o calculista Abrupto, terei de o fazer aqui.

Ó Xô Pacheco, dê uma espreitadela neste texto e fique-se pela bibliofilia ao quilo!


* assim dizia Hermínia Silva a um dos guitarristas que a acompanhavam; também me lembro de lhe ouvir "Anda, Armando!", mas não vem ao caso

0 comments | quinta-feira, outubro 19, 2006

Foto de POS
Passando o Adamastor, Porto, 2006

Faço horas para jantar, escrever aqui é estratégia aceitável para abrir o apetite. Que já é muito, excepto para a escrita, do que resulta incómodo dilema temático. Não me apetece muito falar do Rivoli, dizer mal do que Rui Rio é e representa, dizer que também chegam as coisas a este ponto por os meios culturais serem tacanhos e amiguistas, dizer que a ocupação não passou de "fait-divers" inconsequente mas não perdeu por isso validade e até legitimidade moral (não legal), assumidas que sejam todas as eventuais consequências (que bem podiam ser nenhumas, saibamos relativizar as coisas). Bom, parece que já falei...

No post anterior tinha já escrito sobre o teatro municipal, de forma muito subliminar, é certo, mas também sobre esse logro que é a eleição dos "Grandes portugueses". Mas, se dei uma cajadada em dois coelhos, reconheço que não os matei, pelo que posso voltar à carga. Não contra os grandes portugueses, pobres coitados, mas contra os mitos usados comercialmente pela televisão pública.

Tal como a aldeia de Monsanto não se livra de ser "a mais portuguesa de Portugal", carimbada que assim foi no concurso que o salazarento Secretariado da Propaganda Nacional promoveu em 1938, alguma figura entrará para o luso imaginário como O GRANDE PORTUGUÊS. E é assustador pensar o que dali poderá sair. Saia o que sair, é assustador, pois será sempre uma escolha redutora, enganosa, pacóvia. Não que daí venha mal ao mundo, a coisa já foi feita noutros países, bem como há muito que as revistas se empenham na escolha de personalidades do século, do milénio ou da Criação. Mas é deprimente pensar no risco de a vitória poder caber a uma cantadeira, Amália Rodrigues, ou a um pontapeador de bolas, Eusébio, apenas para citar os mais óbvios entre carradas de exemplos.

Assim pode suceder por tudo o que desbobinei no post anterior, por tudo o que faz deste Portugal uma terra sem critérios, sem exigência, sem memória e sem rigor. Basta olhar para as populares personalidades que deram palpites na emissão inaugural do programa, incapazes de serem isentas de disparates. Também disto darei dois exemplos.

Se bem me lembro (não era Nemésio o único a ter memória), Marcelo Rebelo de Sousa ergueu a simbólica espada de D. Afonso Henriques, o filho que, alegava, se rebelou contra a própria mãe e contra o poderoso rei de Leão, o seu primo Afonso VII, em nome da ousada ideia de uma nova nação que seria Portugal. Ora, historicamente, isso é uma asneirada das grandes. Em primeiro lugar, D. Afonso Henriques nunca foi português. Nos documentos da sua chancelaria, a partir de dada altura, surge como "rei de Portugal", mas nunca se sentiu português, porque esse era um conceito inexistente no século XII. O nosso rei fundador era um chefe militar. Ponto. Ao ser rei, era um chefe militar mais chefe do que os outros chefes militares, seus vassalos. Não havia estado, não havia nação, o que não obsta a que aí esteja o início da nacionalidade. Mas a revolta do jovem intrépido não é bem como se conta, ou seja, como a historiografia actualmente entende, foi rei porque Afonso VII deixou. E porquê? Porque o rei de Leão ostentava o título de imperador, e, para esse título ganhar força, era conveniente que houvesse reis entre os que lhe prestassem vassalagem. É certo que o primeiro monarca de Portugal foi um vassalo nada cumpridor, mas isso é outra história.

Caso número dois: Vasco da Gama. Era um soldado, não um navegador, mas a ele confiou el-rey D. Manuel, primeiro dessa graça que haveria de ser a última da nossa monarquia, o comando da primeira armada que rumou à Índia. Desfazendo o primeiro mito, esclareça-se que o Gama não descobriu o caminho marítimo coisíssima nenhuma, pois estava descoberto e bem descoberto. A passagem do Cabo da Boa Esperança havia sido conseguida (logo, solucionada) por Bartolomeu Dias. Quanto ao Índico, era um oceano totalmente palmilhado e com rotas perfeitamente estabelecidas, pelos navegadores chineses, primeiro, mas também pelos muçulmanos. Quando o Gama foi a Melinde e conseguiu um piloto, não foi por ter conquistado a simpatia do rei local. Esse piloto estava lá à espera, antecipadamente contratado. Ou seja, a viagem de 1498 tinha sido programada muito antes, graças ao trabalho desenvolvido a mando daquele que foi, efectivamente, o grande senhor das descobertas, o Príncipe Perfeito, segundo João que reinou em lusas terras. Um dos episódios mais apaixonantes desses tempos de aventura foi a viagem de Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, agentes de D. João II que andaram pelo Índico, pela Índia, pela Etiópia em busca do Preste João, por toda a costa oriental de África muito antes de lá chegar a armada que Camões cantou. Resumindo, o Gama foi grande porque constitui um marco, mas não foi o grande obreiro de nada daquilo que o imortalizou. Será esse o maior dos portugueses?

Poderia ir por aí fora, mas salto uns séculos, para tocar de raspão a polémica em torno da não-inclusão de Oliveira Salazar na lista de sugestões inicialmente disponibilizada pela RTP. Não me choca que não esteja lá, mas também não me escandalizaria se fosse vetado. Assim aconteceu com Hitler, na Alemanha (não, não estou a comparar Salazar com Hitler), o mesmo sucedeu em França, onde o marechal Pétain foi irradiado antes de o jogo começar. Incomodar-me-ei se o "botas" tiver uma votação expressiva. Claro que sim. Mas não é impossível. O homem faz parte da história, claro, não o podemos nem devemos apagar. Só que me parece que há por aí muitos fãs que não fazem a menor ideia de quem foi o tacanho ditador de Santa Comba Dão. E do tacanho ditador passamos para o iluminado déspota. Nesse programa inaugural, ninguém recomendou que se votasse em Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, marquês de Pombal, ministro de D. José I. Este homem mudou completamente Portugal, fez, no século XVIII, reformas que, em muitos aspectos, ainda perduram, tinha, talvez paradoxalmente, um projecto de modernização do país, pode até ser visto, mais paradoxalmente ainda, como um precursor do Liberalismo. Menos no que respeita ao mais importante valor dos liberais, a Liberdade, claro. Pombal é a marca do tempo em que viveu: o Pombalismo, o Período Pombalino, a Época Pombalina... Mas era um tirano da pior espécie, talvez por isso seja difícil nomeá-lo, a duzentos e muitos anos de distância.

O problema, afinal, está em nomear quem quer que seja. O que é um grande português? É impossível, com seriedade, escolher alguém quando voltamos o olhar para todos os tempos, todas as gentes, todos os espaços. Claro que aquilo é apenas um jogo, mas quase todos olharão para ele como se da verdade se tratasse. Isso é que o torna um logro.

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5 comments | terça-feira, outubro 17, 2006

O país anda, mesmo que em segredo - sempre há pudor das classes pensantes em manifestar adesão a estas coisas da populaça -, empenhado na reflexão sobre a identidade nacional, absorvido na procura de alguém que a corporize ou tenha corporizado, na demanda desse símbolo último, porque de carne e osso, do pátrio orgulho que estende bandeiras nas fachadas e põe as almas a marchar contra os canhões. Como hoje me foi lembrado, ao contrário de outros patriotismos que se projectam no futuro, o português tem o passado como horizonte. Urge, pois, fazer a transição. Impõe-se, porém, alguma cautela. Movimentos bruscos podem deitar tudo a perder, aconselha a prudência que nos identifiquemos com o presente antes de ousarmos o porvir. Temos, assim, um país onde, cada vez mais, prolifera essa ideia liberal de que a felicidade geral resultará do livre exercício de todos os egoísmos, de que o mercado vale mais do que o Estado, de que a cultura é válida enquanto actividade lucrativa. Temos a Floribella, os Morangos com Açúcar, os programas matinais das televisões. Temos muitos leitores de Paulo Coelho e de Margarida Rebelo Pinto, temos galos de Barcelos, Alberto João Jardim, Filipe La Féria. Temos o teatro de revista, pois, a gargalhada pronta quando alguém diz "merda" ou quando solta ruídos corporais, traques, arrotos ou postas de pescada. Temos o Interior que definha, enterrado desde sempre pela sobranceria litoral, mais enterrado ainda na hora em que os agentes financeiros de antanho assim decidiram, como quando os banqueiros de oitocentos cobravam juros de vinte por cento no país profundo, contra os meros cinco por cento com que ajudavam ao desenvolvimento das urbes costeiras. Temos coiratos, torresmos e cervejas mini. Caracóis e moelas e pipis. Temos jornais gratuitos que satisfazem a maioria e jornais pagos que desiludem a minoria. Temos toiros (eu diria touros, mas a sonoridade seria menos marialva). Temos praças de toiros, forcados, campinos, monárquicos de bigode farfalhudo em torno das arenas. Temos ignorância para dar e vender, boçalidade para encher mil covas da Iria. Temos Fátima e fado, pois claro. E gente que prefere ir à bola a ter comida no prato. Temos dormência nas cabeças e pujança nos punhos. Temos pessoas que cospem no chão coberto de bosta de cão. Somos nação! Temos centros comerciais, cada vez mais. E cidades que caem, património à mercê da erosão, mais em conta do que a implosão. Temos analfabetismo funcional, iliteracia a todos os níveis. Temos vaidades fúteis que se mostram, talentos que se escondem com vergonha. Temos parolice plastificada, porque não há parolice no que é genuíno. Temos calhaus com dois olhos, quatro olhos cinco seis sete mil olhos. Que falam. E opinam. E tentam ironizar. Sobre tudo e contra todos, porque assim chegamos à tal ideia de que os egoísmos se equilibram, de que a mão invisível nos conduzirá à felicidade terrena, sem que um qualquer estado tiranizante tenha de contribuir para isso. Temos uma anedota de país, está visto. Portanto, solenemente, proponho, aqui e agora, que o título de "Grande português" seja dado, sem recurso a votações que podem ser traiçoeiras, à portuguesa Helena Matos.

1 comments | segunda-feira, outubro 16, 2006

Vi há bocado no mail este apelo da Manuela Delgado Leão Ramos. Só me resta publicá-lo, sem delongas quanto a esse crime horrendo, mas não tipificado, que é o abandono de animais.

0 comments | sexta-feira, outubro 13, 2006

...por estar sem forças para blogar.

1 comments | quinta-feira, outubro 05, 2006

Foto de POS

0 comments | quarta-feira, outubro 04, 2006

Foto de POS
Gondomar, Setembro de 2006

Por razões que creio alheias à fé, esta senhora "cega, surda e muda", usando a descrição do proscrito padre Mário de Oliveira (aquele que escreve livros em série sempre a dizer a mesma coisa), tem ocupado boa parte dos meus pensamentos. Veremos no que dá, se der.

IVG

3 comments | terça-feira, outubro 03, 2006

Os temas que alimentam o debate são cíclicos, nesta e noutras paragens. A estupidez é contínua. Peço desculpa, mas eu, como descontínuo que sou, tenho direito aos meus momentos de radical intolerância e, nesse pressuposto, considero o argumentário dos que tão piamente defendem o não à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, regra geral, intelectualmente repugnante.

Vejamos: a discussão de ideias é o motor da existência social e, por tabela, tantas vezes, da existência pessoal. Ou seja, há um carácter pragmático inerente ao debate de ideias. Se a discussão for inconsequente, o esforço é vão, estúpido até, provavelmente masoquista. Por algum motivo, não é corrente discutir com paredes, sanitas ou baldes de plástico.

Adiante. Cada qual tem a sua ordem de valores e por ela deve reger-se, evidentemente. E o direito das pessoas à vida é inalienável. Só que, como ninguém me consegue convencer, sem fundamentos religiosos que não podem fazer lei, que o momento da concepção significa a existência espontânea da infinita complexidade que é uma pessoa, escapam ao meu entendimento as razões correntes para a posição que não partilho. É de uma leviandade atroz dizer que a descriminalização das mulheres (ou o combate ao de outra forma ineludível aborto clandestino, porque também disso se trata) significa a vulgarização do aborto como contraceptivo. Os que assim opinam atrevem-se a julgar o que dói na alma dos outros. Não têm tal direito. Se, para tantos opinadores, e até, admito, para a generalidade das pessoas, uma gravidez é felicidade pura, isso não invalida que em tantos casos possa ser uma tragédia. De um ou de outro modo, é um assunto que releva da intimidade, não se presta a debates absurdos em que apenas está em jogo a sobrevivência de uma moral dita cristã, que mais não é do que a velha estratégia de poder das estruturas eclesiásticas.

A vida é um milagre, certo, mas a Deus competirá legislar sobre milagres, vinculando os crentes. Não aos estados, que vinculam os cidadãos. Aos estados compete legislar em nome da saúde pública, em nome da dignidade de todos e de cada um. E aos estados compete combater degradantes flagelos como o aborto clandestino, praticado em condições cuja precariedade aumenta em função da pobreza das pessoas, o que exclui uma esmagadora percentagem dos pudicos paladinos da moral.

Não acredito que alguma mulher, algum casal, alguma pessoa o faça de ânimo leve. Fá-lo-ão, portanto, ponderando uma infinitude de factores em que não deve entrar a moral alheia. Ou até por medo, terror, imaturidade, solidão, o que quer que seja e ninguém tem legitimidade para condenar de ânimo leve. Volto a dizer: cada um deve respeitar os seus próprios valores. Assim pensa quem defende o sim. Os outros, aqueles que discutem da mesma forma que uma parede, uma sanita ou um balde de plástico, pugnam pelo não, tantas vezes tisnados de hipocrisia. Porque acreditam ser senhores do juizo universal e definitivo. Porque julgam, pelos vistos, ser Deus.

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0 comments | segunda-feira, outubro 02, 2006



Às vezes, quando preciso de acreditar que a Vida se escreve com maiúscula, vejo este espantoso vídeo. Assim, sem mais. Já passou aqui pela FdV, em condições precárias. Volta a estar disponível, para que todos possam sonhar, com a ajuda dos Sigur Rós, mas especialmente para ti, que mo ensinaste, com todo o carinho.

nota: os conhecimento de Islandês são perfeitamente dispensáveis, mas há traduções disponíveis por aí, basta procurar "Hoppipolla"...

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Havendo aspectos positivos a destacar na actual gestão da Câmara Municipal do Porto, a política de excrementos terá de vir no topo da lista, não devendo ler-se aqui ironia em torno do que vai sendo redigido no site oficial do município. Refiro-me, com mais seriedade do que talvez imaginem, aos dispensadores de sacos para recolha de fezes caninas, cada vez mais visíveis por toda a cidade e, infelizmente, demasiado vanguardistas para a boçalidade dominante no país. Esta semana, tive, durante dois dias, a companhia do Sancho, amigalhaço que, normalmente, não está comigo. Vai daí, passeei-o pelas cercanias de minha casa e, de cada vez que ele entendeu adequado dar de corpo, usei os ditos sacos para recolher os presentes e depositá-los em contentores de lixo. A técnica é simples, põe-se a mão dentro do saco, agarra-se a fumegante matéria, vira-se o saco do avesso, deita-se fora. Não se toca em nada, pelo que os mais esquisitinhos não têm com que se preocupar. Imaginarão que não vejo prazer nenhum em mexer em excrementos de cão, mas este é o procedimento que sempre tive. Se o município não os disponibilizasse, levaria sacos no bolso, para esse efeito, como sempre fiz. Porém, o que vejo é que, pelo menos na minha rua, devo ter sido a primeira pessoa a servir-se dos sacos-cão. Evidentemente, porcos são os que não gostam de mexer. A falar muito a sério, nem são merecedores de ter cães. Sabem lá o que isso é.