0 comments | domingo, outubro 29, 2006

Numa semana, foram dadas à estampa, na Imprensa portuguesa, duas crónicas* de enorme importância também para a blogosfera, mas, especialmente, para o jornalismo. A de José Pacheco Pereira, no “Público”, e a de Miguel Sousa Tavares, no “Expresso”. A primeira suscitou rasgados elogios na blogosfera, a segunda nem por isso. Concordo com ambas, de um modo geral. A de JPP é sobre o jornalismo de sarjeta, invasor da privacidade em medidas que transcendem o interesse público. Profundo conhecedor que é da utilização dos media para fins políticos, desmonta com assinalável precisão uma não-notícia, que juntou o picante do boato ao (re)lançamento do debate de um tema fracturante (é moda dizer assim). A de MST, partindo da história pessoal do cronista, levanta o problema da impunidade que o anonimato proporciona, da forma como os blogues acentuam o problema e da irresponsabilidade com que agentes do jornalismo amplificam as calúnias. Interessa-me bem mais a segunda.

Não diria o erro, mas a fragilidade da crónica de Miguel Sousa Tavares, intitulada “Cybercobardia”, está na preocupação dominante – absolutamente legítima e compreensível – de defesa da honra. Tal conduz a uma inversão dos factores, em que o destaque cabe quase todo à demonização da blogosfera e da Internet, numa estrutura que desagua no verdadeiro problema, mas de forma algo discreta, no remate final da crónica: “Fiquei a saber, e não sabia, que os blogues, mesmo anónimos, são uma fonte de informação privilegiada e credível para o nosso jornalismo”.

Presumo que a calúnia será tão antiga como o processo de hominização. Ao longo dos tempos, evolui. E tem sempre o rosto escondido: intrigas segredadas em corredores soturnos, cartas e outros escritos apócrifos, telefonemas de gente que não se identifica, notícias em que a informação não é devidamente verificada através do cruzamento e crítica de fontes. Neste tempo em que estamos, a vida, e não apenas no capítulo das ideias, está em permanente confronto com o inelutável poder da Internet, do alucinante progresso tecnológico, da quantidade de informação com que nos confrontamos. Estamos num ponto em que tudo é demasiado rápido, sentimo-nos ultrapassados a cada segundo que passa. Mas é este o tempo que vivemos. A ele teremos de nos adaptar, pois nunca o tempo se adaptou às pessoas. Desde sempre, porque a isso leva a natureza humana, ou, melhor, a natureza de muitos seres humanos, o progresso teve os seus versos de medalha. Uma descoberta benéfica pode sempre resultar no caminho para a perfídia. Por que haveria a Internet de escapar a isso? Mas o mal não é a Internet. O mal tem sempre forma de gente.

Diz MST que os blogues são “o paraíso do discurso impune, da cobardia mais desenvergonhada, da desforra dos medíocres e dessa tão velha e tão trágica doença portuguesa que é a inveja”. Serão, até que outro meio se torne mais propício. Mas nunca se deixou de escrever cartas por causa das cartas caluniosas, nunca se deixou de telefonar por causa dos telefonemas anónimos, nunca a evolução da tipografia foi travada por tantos e tantos escritos apócrifos caluniosos terem passado, ao longo dos tempos, a letra de forma. Sinceramente, não acredito que MST não leia blogues, “tout court”. Quando ele diz que apenas lhe interessa, na Internet, “o correio electrónico e a consulta de ‘sites’ informativos”, está a admitir tudo e mais alguma coisa, justamente a infinidade de coisas que podem colocar-se nesse bojudo e indefinido saco dos sites informativos.

A Internet, lato sensu, e os blogues, stricto sensu, são como o resto da vida. Temos de criticar, compreender, escolher. O crime está, quase sempre, um ou vários passos à frente das técnicas de investigação, porque estas são mais terapêuticas do que profilácticas. Os períodos de transição, como este que ainda atravessamos, no que respeita à sociedade dita da informação, apanham-nos sempre desprevenidos. Ultrapassar isso faz para do processo colectivo de crescimento, como sempre fez.

Este meu blogue tem assinatura. E só admito os escritos sem nome quando não se destinam à calúnia cobarde (lembram-se do Pipi? O anonimato era necessário, e não veio daí mal ao mundo, pelo contrário). Fugindo ao exemplo de outros cantos da blogosfera portuguesa, não houve na Fonte das Virtudes referência ao blogue sem rosto feito para caluniar MST. Porque as acusações, muito graves, não estavam minimamente validadas. Se o assunto me interessasse por aí além, teria de esperar que alguém credível o desmentisse ou confirmasse (demonstrando por que o fazia), ou, então, meter mãos à obra e confrontar os textos. Se bem que é estúpido pensar que MST, em cujos defeitos não se inclui a falta de inteligência, seria capaz de incluir numa blibliografia as obras que eventualmente tivesse copiado. Porém (também eu dei uma volta muito grande para chegar ao que realmente me parece importante), essa estupidez varreu a Comunicação Social portuguesa. Mais um de tantos episódios que envergonham os jornalistas minimamente lúcidos.

Fazer jornais é uma actividade humana. Como tal, não está isenta de defeitos. A deontologia é batalha permanente, num mundo extremamente complexo, movido por uma infinidade de factores, que vão das lógicas comerciais (os jornais fazem-se para ser vendidos, não sejamos ingénuos) à precariedade de postos de trabalho ou a repercussões que esta ou aquela atitude possam ter na construção de carreiras pessoais. Parece claro, porém, que está a ser trilhado, a alegremente irresponsáveis passos, o caminho da auto-destruição. Esta irresponsabilidade deriva da concorrência, é claro, pois todos querem as suas “cachas”, todos querem passar a perna aos restantes títulos. Mas resulta, também, da margem de acção que é dada por uma opinião pública pouco exigente (até ver...), que atribui à Comunicação Social o papel de justiceira num país supostamente entregue à bicharada (MST é comentador semanal no noticiário televisivo que mais faz isso).

Os jornais nasceram, muitas vezes, de impulsos de cidadania. Mas também, como ainda hoje se verifica, de estratégias montadas para fins muito específicos, políticos ou económicos. Não é um fenómeno português. E poderá parecer um caminho sem retorno, no sentido em que o tendencial aumento dos níveis de exigência dos públicos resultará no afastamento destes. Neste capítulo, prefiro ser optimista. O caminho da Liberdade passará sempre por uma Comunicação Social responsável, responsabilizável e responsabilizadora. Não pelo somatório de liberdades individuais, como os blogues, porque não há no ser humano a capacidade de ler tudo e fazer a síntese.

O aumento dos níveis de exigência é, parece-me, a única forma de pôr fim a essa peste que é o anonimato impune. Dela virão todos os benefícios para quem lê, mas também para quem escreve.

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* A crónica de Pacheco Pereira está publicada no Abrupto, sob o título "A degradação da privacidade e da intimidade"; para a de Miguel Sousa Tavares não posso fazer link, pois está no site do "Expresso", apenas para utilizadores-pagadores.