Passando o Adamastor, Porto, 2006
Faço horas para jantar, escrever aqui é estratégia aceitável para abrir o apetite. Que já é muito, excepto para a escrita, do que resulta incómodo dilema temático. Não me apetece muito falar do Rivoli, dizer mal do que Rui Rio é e representa, dizer que também chegam as coisas a este ponto por os meios culturais serem tacanhos e amiguistas, dizer que a ocupação não passou de "fait-divers" inconsequente mas não perdeu por isso validade e até legitimidade moral (não legal), assumidas que sejam todas as eventuais consequências (que bem podiam ser nenhumas, saibamos relativizar as coisas). Bom, parece que já falei...
No post anterior tinha já escrito sobre o teatro municipal, de forma muito subliminar, é certo, mas também sobre esse logro que é a eleição dos "Grandes portugueses". Mas, se dei uma cajadada em dois coelhos, reconheço que não os matei, pelo que posso voltar à carga. Não contra os grandes portugueses, pobres coitados, mas contra os mitos usados comercialmente pela televisão pública.
Tal como a aldeia de Monsanto não se livra de ser "a mais portuguesa de Portugal", carimbada que assim foi no concurso que o salazarento Secretariado da Propaganda Nacional promoveu em 1938, alguma figura entrará para o luso imaginário como O GRANDE PORTUGUÊS. E é assustador pensar o que dali poderá sair. Saia o que sair, é assustador, pois será sempre uma escolha redutora, enganosa, pacóvia. Não que daí venha mal ao mundo, a coisa já foi feita noutros países, bem como há muito que as revistas se empenham na escolha de personalidades do século, do milénio ou da Criação. Mas é deprimente pensar no risco de a vitória poder caber a uma cantadeira, Amália Rodrigues, ou a um pontapeador de bolas, Eusébio, apenas para citar os mais óbvios entre carradas de exemplos.
Assim pode suceder por tudo o que desbobinei no post anterior, por tudo o que faz deste Portugal uma terra sem critérios, sem exigência, sem memória e sem rigor. Basta olhar para as populares personalidades que deram palpites na emissão inaugural do programa, incapazes de serem isentas de disparates. Também disto darei dois exemplos.
Se bem me lembro (não era Nemésio o único a ter memória), Marcelo Rebelo de Sousa ergueu a simbólica espada de D. Afonso Henriques, o filho que, alegava, se rebelou contra a própria mãe e contra o poderoso rei de Leão, o seu primo Afonso VII, em nome da ousada ideia de uma nova nação que seria Portugal. Ora, historicamente, isso é uma asneirada das grandes. Em primeiro lugar, D. Afonso Henriques nunca foi português. Nos documentos da sua chancelaria, a partir de dada altura, surge como "rei de Portugal", mas nunca se sentiu português, porque esse era um conceito inexistente no século XII. O nosso rei fundador era um chefe militar. Ponto. Ao ser rei, era um chefe militar mais chefe do que os outros chefes militares, seus vassalos. Não havia estado, não havia nação, o que não obsta a que aí esteja o início da nacionalidade. Mas a revolta do jovem intrépido não é bem como se conta, ou seja, como a historiografia actualmente entende, foi rei porque Afonso VII deixou. E porquê? Porque o rei de Leão ostentava o título de imperador, e, para esse título ganhar força, era conveniente que houvesse reis entre os que lhe prestassem vassalagem. É certo que o primeiro monarca de Portugal foi um vassalo nada cumpridor, mas isso é outra história.
Caso número dois: Vasco da Gama. Era um soldado, não um navegador, mas a ele confiou el-rey D. Manuel, primeiro dessa graça que haveria de ser a última da nossa monarquia, o comando da primeira armada que rumou à Índia. Desfazendo o primeiro mito, esclareça-se que o Gama não descobriu o caminho marítimo coisíssima nenhuma, pois estava descoberto e bem descoberto. A passagem do Cabo da Boa Esperança havia sido conseguida (logo, solucionada) por Bartolomeu Dias. Quanto ao Índico, era um oceano totalmente palmilhado e com rotas perfeitamente estabelecidas, pelos navegadores chineses, primeiro, mas também pelos muçulmanos. Quando o Gama foi a Melinde e conseguiu um piloto, não foi por ter conquistado a simpatia do rei local. Esse piloto estava lá à espera, antecipadamente contratado. Ou seja, a viagem de 1498 tinha sido programada muito antes, graças ao trabalho desenvolvido a mando daquele que foi, efectivamente, o grande senhor das descobertas, o Príncipe Perfeito, segundo João que reinou em lusas terras. Um dos episódios mais apaixonantes desses tempos de aventura foi a viagem de Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, agentes de D. João II que andaram pelo Índico, pela Índia, pela Etiópia em busca do Preste João, por toda a costa oriental de África muito antes de lá chegar a armada que Camões cantou. Resumindo, o Gama foi grande porque constitui um marco, mas não foi o grande obreiro de nada daquilo que o imortalizou. Será esse o maior dos portugueses?
Poderia ir por aí fora, mas salto uns séculos, para tocar de raspão a polémica em torno da não-inclusão de Oliveira Salazar na lista de sugestões inicialmente disponibilizada pela RTP. Não me choca que não esteja lá, mas também não me escandalizaria se fosse vetado. Assim aconteceu com Hitler, na Alemanha (não, não estou a comparar Salazar com Hitler), o mesmo sucedeu em França, onde o marechal Pétain foi irradiado antes de o jogo começar. Incomodar-me-ei se o "botas" tiver uma votação expressiva. Claro que sim. Mas não é impossível. O homem faz parte da história, claro, não o podemos nem devemos apagar. Só que me parece que há por aí muitos fãs que não fazem a menor ideia de quem foi o tacanho ditador de Santa Comba Dão. E do tacanho ditador passamos para o iluminado déspota. Nesse programa inaugural, ninguém recomendou que se votasse em Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, marquês de Pombal, ministro de D. José I. Este homem mudou completamente Portugal, fez, no século XVIII, reformas que, em muitos aspectos, ainda perduram, tinha, talvez paradoxalmente, um projecto de modernização do país, pode até ser visto, mais paradoxalmente ainda, como um precursor do Liberalismo. Menos no que respeita ao mais importante valor dos liberais, a Liberdade, claro. Pombal é a marca do tempo em que viveu: o Pombalismo, o Período Pombalino, a Época Pombalina... Mas era um tirano da pior espécie, talvez por isso seja difícil nomeá-lo, a duzentos e muitos anos de distância.
O problema, afinal, está em nomear quem quer que seja. O que é um grande português? É impossível, com seriedade, escolher alguém quando voltamos o olhar para todos os tempos, todas as gentes, todos os espaços. Claro que aquilo é apenas um jogo, mas quase todos olharão para ele como se da verdade se tratasse. Isso é que o torna um logro.
Etiquetas: Grandes Portugueses
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