Os temas que alimentam o debate são cíclicos, nesta e noutras paragens. A estupidez é contínua. Peço desculpa, mas eu, como descontínuo que sou, tenho direito aos meus momentos de radical intolerância e, nesse pressuposto, considero o argumentário dos que tão piamente defendem o não à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, regra geral, intelectualmente repugnante.
Vejamos: a discussão de ideias é o motor da existência social e, por tabela, tantas vezes, da existência pessoal. Ou seja, há um carácter pragmático inerente ao debate de ideias. Se a discussão for inconsequente, o esforço é vão, estúpido até, provavelmente masoquista. Por algum motivo, não é corrente discutir com paredes, sanitas ou baldes de plástico.
Adiante. Cada qual tem a sua ordem de valores e por ela deve reger-se, evidentemente. E o direito das pessoas à vida é inalienável. Só que, como ninguém me consegue convencer, sem fundamentos religiosos que não podem fazer lei, que o momento da concepção significa a existência espontânea da infinita complexidade que é uma pessoa, escapam ao meu entendimento as razões correntes para a posição que não partilho. É de uma leviandade atroz dizer que a descriminalização das mulheres (ou o combate ao de outra forma ineludível aborto clandestino, porque também disso se trata) significa a vulgarização do aborto como contraceptivo. Os que assim opinam atrevem-se a julgar o que dói na alma dos outros. Não têm tal direito. Se, para tantos opinadores, e até, admito, para a generalidade das pessoas, uma gravidez é felicidade pura, isso não invalida que em tantos casos possa ser uma tragédia. De um ou de outro modo, é um assunto que releva da intimidade, não se presta a debates absurdos em que apenas está em jogo a sobrevivência de uma moral dita cristã, que mais não é do que a velha estratégia de poder das estruturas eclesiásticas.
A vida é um milagre, certo, mas a Deus competirá legislar sobre milagres, vinculando os crentes. Não aos estados, que vinculam os cidadãos. Aos estados compete legislar em nome da saúde pública, em nome da dignidade de todos e de cada um. E aos estados compete combater degradantes flagelos como o aborto clandestino, praticado em condições cuja precariedade aumenta em função da pobreza das pessoas, o que exclui uma esmagadora percentagem dos pudicos paladinos da moral.
Não acredito que alguma mulher, algum casal, alguma pessoa o faça de ânimo leve. Fá-lo-ão, portanto, ponderando uma infinitude de factores em que não deve entrar a moral alheia. Ou até por medo, terror, imaturidade, solidão, o que quer que seja e ninguém tem legitimidade para condenar de ânimo leve. Volto a dizer: cada um deve respeitar os seus próprios valores. Assim pensa quem defende o sim. Os outros, aqueles que discutem da mesma forma que uma parede, uma sanita ou um balde de plástico, pugnam pelo não, tantas vezes tisnados de hipocrisia. Porque acreditam ser senhores do juizo universal e definitivo. Porque julgam, pelos vistos, ser Deus.
Etiquetas: Aborto
3 Comments:
Meu caro, acho que lhe escapou o essencial. Permita-me sugerir-lhe a leitura destes 2 textos:
http://taf.net/opiniao/2004/08/o-aborto-verso-2004.htm
http://taf.net/opiniao/2004/09/perguntas-esquecidas.htm
Saudações!
18:15
Caro TAF,
Li os textos nas devidas ocasiões, agora passei-lhes os olhos muito rapidamente, porque o tempo aperta. Não creio que me tenha escapado o essencial, apenas que temos uma divergência de pontos de vista neste particular. E que assenta no facto de se considerar, ou não, a concepção como momento primeiro de uma determinada pessoa, detentora de direitos civis. Quanto ao aborto aos sete meses de gravidez de que, em tese, fala, julgo que deveria esbarrar na própria ética médica. Não é disso que estamos a tratar.
Saudações retribuídas
18:51
Caros seres humanos, penso não partilhar convosco no profundo do meu ser. Apenas posso dizer que a atitude mais sensata será a abstenção! embora se votar em consciência o meu voto nunca irá para a banalização do aborto, um crime contra a própria humanidade.
Saudações cordiais.
20:43
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