3 comments | segunda-feira, janeiro 29, 2007

Está a decorrer na televisão um debate sobre o aborto. Um jogo de futebol, um combate de boxe, algo muito diferente das discussões de que a luz nasce, porque nenhuma das partes está disposta a aprender com a outra. Havendo uma barricada, já deixei aqui claro de que lado estou. Voto SIM, tal como fiz da outra vez, mas preferia não votar, simplesmente porque o assunto, como não toca ao todo nacional, não justifica a realização de um referendo. Sócrates enveredou pelo referendo para não se comprometer politicamente, condicionado pela parva negociata que em tempos fizeram Marcelo e Guterres.

Voto SIM por muitos motivos, mas quero agora dizer que o faço porque sou muito pequeno para julgar. E o que vejo do outro lado é a permanente demonização, a condenação hipócrita. O texto da popular e aplicada plumitiva Rita Ferro, lido pelo actor João de Carvalho no início do programa, é, de uma ponta a outra, um manifesto de desprezo pelas mulheres que abortam, uma condenação sumária e sem recurso. É preciso ser muito grande, talvez Deus, para ter tantas certezas e brandir tão afiadas espadas.

Seja qual for o resultado da votação, ninguém perderá a consciência, nenhuma pessoa será despojada da moral. Se o sim ganhar, acaba-se com a vergonha da perseguição a mulheres e cria-se o único mecanismo efectivo para combater o aborto clandestino: torná-lo dispensável. Se ganhar o não, nada mudará, continuará a vergonha, permanecerá o atraso.

Porque se fazem abortos desde sempre e continuarão a fazer, porque sempre houve e haverá dramas pessoais que escapam ao legislador. Despenalizar o aborto e permitir que se faça em condições de dignidade e segurança não é um incentivo, da mesma forma que não o seria a atribuição de isenção de impostos a quem se predispusesse a cortar os próprios braços e pernas. As pessoas não estão à espera de usar a interrupção voluntária da gravidez como um mero contraceptivo, e é aviltante que se pense isso.

Os do não estão cheios de dinheiro para fazer cartazes demagógicos. Haverá pelo meio desse dinheiro, porventura, algum do que poderia ter servido para pagar idas a Badajoz, a Madrid ou a Londres. Dizem que são serenos e acusam os opositores de intolerância. Essa é uma posição fácil. Num debate, seja ele qual for, ganham-se sempre alguns pontos quando se fala em amor e em vida, serenamente, acusando os adversários de intolerância. Mesmo que se defendam as maiores aleivosias. Eu, partidário do SIM, reconheço que me impaciento com os que se atrevem a dizer-se defensores da vida, como se os outros não o fossem. Votam não, mas não para impedir o aborto, apenas para permitir que continue a fazer-se em condições degradantes, à margem da lei e à revelia da segurança, ou, então, no secreto recato das clínicas além-fronteiras, estas apenas para quem pode e para quem mente.

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3 comments | quinta-feira, janeiro 25, 2007



Para ouvir e ver, apenas. Desta coreografia para a célebre Méditation, da ópera "Thaïs", de Jules Massenet, pouco posso esclarecer, já que o videomaníaco que a colocou no YouTube não o fez. Mas a fruição pode dispensar o esclarecimento.

0 comments | terça-feira, janeiro 23, 2007

Claro que é significativa a circunstância de não haver mulheres entre os "dez mais" da festarola televisiva. Mas não quero reflectir sobre o assunto. Já o fez Beatriz Pacheco Pereira, no debate a que me referi no post anterior, ao acusar os jornais de apenas noticiarem no masculino, o que induzirá os historiadores do porvir em erro, fazendo-os pensar que as mulheres de hoje teriam sido uma nulidade. Ora, isso significaria que os futuros historiadores fizessem uma regressão metodológica sem precedentes, ignorando a crítica das fontes e limitando-se à leitura de periódicos. Significaria, também, que teríamos de ter, hoje, a percepção daquilo que os historiadores de dois mil e cem quererão procurar e que produziríamos documentação em função deles, algo que nunca foi feito desde que o tempo é tempo. Mas também não é isso o mais importante. Sobre as mulheres, os historiadores do futuro terão mil e uma fontes para consultar, além dos jornais. Por exemplo, o livro "O Porto e as suas mulheres", obra de Beatriz Pacheco Pereira em que a própria Beatriz Pacheco Pereira tem direito a páginas de louvor. A bem da posteridade.

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2 comments | segunda-feira, janeiro 22, 2007

Somos o que julgamos ou julgamos o que queremos ser? Ou o que julgamos ter aprendido? A História com agá maiúsculo é uma coisa peculiar, porque grande e minúscula. Confuso? Talvez não o seja assim tanto, se o pensarmos à luz deste passatempo dos “Grandes Portugueses”, uma ilusão de fenómeno, porque toda a transcendência subjacente está no meio e não na mensagem, isto é, a televisão poderia transformar a produção de colheres de pau em desígnio nacional sem dificuldades de maior. Tal como os agentes políticos de sempre, por exemplo, fazem com a exaltação do passado, esse tal conceito ao mesmo tempo grandioso e redutor.

Mais confuso ainda, está visto. Toca a reformular. A linha de fronteira traça-se entre essa História maiúscula sobre a qual todos têm opinião (e ainda bem que assim é) e a historiografia, que devemos pintar com essa minúscula modéstia, a penosa construção parcelar do conhecimento que temos do passado, explicando-o e descrevendo-o sempre com generosa aplicação de reticências. Essa História que “ensinam nas escolas” (talvez já não tanto), essa História dos programas televisivos do “príncipe dos comunicadores”, tem uma roupagem definitiva, mesmo que lha não ponham explicitamente, enquanto a historiografia enverga as tímidas vestes da probabilidade, da proposta. A História é uma mitologia, enquanto a historiografia resulta, muitas vezes, na desmontagem de mitos. A primeira inspira mais, porventura, a segunda impacienta-se sem se resignar.

Quando o povão (e todos somos povão) é chamado a escolher o Grande Português, com maiúsculas à escala da História, faz uso dessa matriz mitológica que aprendeu na escola, na rua ou na mesa de café. É no campo do mito, portanto, que a votação se torna reveladora. Isso é importante? Claro que é, se o entendermos. A outra via, a do não entendimento, é sempre perniciosa.

Assisti, parcialmente, a mais um debate televisivo sobre este passatempo dos “Grandes Portugueses”. A ele voltarei. Agora, registo apenas este mundo de fantasmas do passado remoto e de um passado tão fresco que ainda temos por presente. Talvez o próprio programa, ou o que dele resultar, seja o fantasma do futuro, para que se complete o trio que Dickens fez desfilar frente a Ebenezer Scrooge. Os nomeados são dez, o dobro do normal numa categoria dos Óscares. Os portugueses votarão naqueles que mais os impressionam. Na Fonte das Virtudes ficam, agora, impressões sobre os próprios, escritas de cor, num momento de insónia (e publicadas agora porque não tenho net em casa...).


D. Afonso Henriques
Dizer que o primeiro rei de Portugal inventou isto é, de certo modo, uma verdade irrefutável. Mas foi, por isso, um grande português? Isso já não é tão fácil de dizer. Suponhamos que eu fundava o F. C. Porto. Isso fazia de mim um grande portista? Não necessariamente, pois seria necessário que, em minha vida, o conceito de portista ganhasse forma e relevância, para que eu pudesse ser portista, primeiro, e só depois grande. Ora, o “Conquistador” quis ser rei, não quis fundar uma pátria. Porque, quando ele viveu, a “pátria” era o rei e as imbricadas relações de vassalidade que nele acabariam sempre por desaguar. Um chefe militar, um “primus inter pares”. Certo é que o desgraçado que vivia na base da pirâmide, a esmagadora maioria da pequena população, não tinha qualquer noção de portugalidade nem saberia quem era o rei, admitindo-se que sabia da existência desse senhor acima dos restantes senhores. Fez Portugal? Sim. Conquistou Lisboa aos mouros? Pois... Isso torna-o símbolo máximo de uma nação que não existia? Se calhar, mas a nação não existia mesmo, não apenas quando nasceu, mas, também, quando a morte pôs termo ao longo reinado.

Álvaro Cunhal
Um grande português fiel ao soviete supremo? Tenham paciência!... Cunhal é, talvez, o símbolo maior da luta contra o Estado Novo. Porém, o comunismo é indissociável do internacionalismo e significaria sempre, se não o fim de Portugal, a anulação de Portugal num contexto que lhe seria superior. Se o que está a ser votado é o “Grande Português”, a escolha de Cunhal não faz sentido, se bem que se compreenda a inclusão do líder histórico do PCP na lista dos “dez mais”, resultante de um esforço de mobilização motivado, em grande parte, pelos ventos que anunciavam forte votação em Oliveira Salazar.

António de Oliveira Salazar
Um parolo. Salazar foi, acima de tudo, um parolo. E isso não é menorizar o autoritarismo, a repressão, o silenciamento, a guerra... Dizer que Oliveira Salazar é a causa do nosso atraso é injusto, se a análise for fria, na simples medida em que Portugal foi sempre um país atrasado. Mesmo quando cresceu e teve hegemonia marítima, nunca se desenvolveu. Mas que o homem contribuiu, fortemente, para o nosso atraso, isso é outra coisa. Metade do século mais alucinante da história universal, vivido sob a beatífica ditadura nascida em Santa Comba Dão, foi vivida por Portugal ao ritmo das colheitas e dos sinos nos campanários. Orgulhosamente sós. Portanto, uma grande bosta.

Aristides de Sousa Mendes
Uma grande pessoa, talvez ainda insuficientemente estudada, daí revestida, também, da dimensão mítica que lhe é atribuída. Mas há grandes pessoas em todo o lado, portuguesas ou não. O cônsul em Bordéus, que ajudou uma multidão de judeus, e não só, a fugir às garras do nazismo, foi um homem bom. Como o foi o alemão Oskar Schindler. Mas numa dimensão que, transcendendo a nacionalidade, não é portuguesa. Ou seja, escapa a esse conceito de identidade nacional que parece associado ao programa.

Fernando Pessoa
Um génio. Um homem atormentado, soturno, místico, que tantas vezes preferia a vida junto de anónimos companheiros de bebedeira. Mas que tinha outra dimensão, outras dimensões infinitamente acima da vulgaridade. Com os outros, os que não partilhavam essa dimensão de vulgaridade em que sobrevivia, apenas aceitava falar de arte, pela arte. E era um génio. “Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”: nunca haverá português pequeno capaz de o pôr nesses termos.

Infante D. Henrique
Um grande português, emblema da nossa universalidade, símbolo da partida para as descobertas. Mas um homem dividido, muitas vezes hesitante entre a guerra no Norte de África e o desbravamento da costa ocidental. Sempre muito cioso do seu património pessoal, que engordou brutalmente ao longo da vida. Mas um homem de visão, sem dúvida, não por querer espalhar a fé ou dar novos mundos ao mundo, mas por adivinhar o único caminho para onde, afinal, nos empurravam a fraca presença nos circuitos comerciais da Europa e a necessidade de contornar o tampão islâmico.

D. João II
Isabel, a Católica, ter-lhe-á chamado “O Homem”. Sem cargas pejorativas, apenas ciente da grandeza que lhe atribuía. O rumo dos povos e das nações é, como o rumo das pessoas, feito de curvas e contracurvas, de caminhos que se escolhem ao arrepio de outros. O “Príncipe Perfeito” esteve com o pai, Afonso V, na batalha de Toro, que não foi uma derrota militar de Portugal, mas anulou as veleidades de união ibérica com predomínio do reino ocidental da península. Há, hoje, historiadores espanhóis (insuspeitos, portanto) a admitir que, caso D. Afonso V tivesse sabido seduzir melhor a aristocracia castelhana, apresentando um bom plano, não teria sido o casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão a determinar o surgimento de Espanha. D. João II, homem de uma visão extraordinária, poderia ter sido senhor de algo bem maior. Mas não foi, o que não o impediu de ser “O Homem”. Mais do que pela hábil negociação de Tordesilhas, o reinado deste monarca ficou marcado pela acção estratégica, pelo prosseguimento de uma política de expansão que privilegiava o sonho da Índia e, provavelmente, acautelava a posse do Brasil (que algumas teorias não descabidas de sentido admitem ter sido tocado bem antes de Cabral). Toda a viagem do Gama foi construída no tempo de D. João II (a viagem de Afonso de Paiva e Pero da Covilhã, um dos mais apaixonantes episódios desse tempo, merecia mais ampla divulgação). Suspeita-se que tenha morrido envenenado. Ele mesmo era, diga-se, alguém que mandava matar facilmente. Muito facilmente. Mas foi um grande rei. O sucessor, o afortunado D. Manuel I, brilhou, mas em grande parte porque herdou a máquina e a estratégia.

Luís Vaz de Camões
Aos dez de Junho de 1580, quando Portugal estava a cair sob o legítimo domínio de Filipe II, que assim foi senhor de um império onde o sol nunca se punha, a morte de Camões estava ainda longe de ser um marco no espírito da nacionalidade. Mas é-o, ainda hoje. Dele é o “Dia de Portugal”, a ele não faltaram engenho e arte para, cantando, espalhar por toda a parte essa nossa grandeza, também ela fortemente carregada de mito, mas sem a qual não somos. Não se diz aqui mal dos poetas.

Sebastião José de Carvalho e Melo
Um tirano da pior espécie. Mas iluminado. O Marquês de Pombal, embaixador em Viena e Londres, aprimorou lá por fora as estratégias políticas e cimentou a ideia de conceber um destino para o país. Os lisboetas associam-no ao terremoto de 1755 (que destruiu todo o Sul do país, não apenas a capital...), mas a verdade é que Pombal foi um génio reformista, cuja obra está ainda, de várias maneiras, estampada na nossa organização presente. Figura que nunca poderia gerar indiferença, fez com que um largo lapso temporal do século XVIII seja intitulado de “período pombalino”. Ou seja, deixou a marca por tudo quanto era lado, podendo ser dados como exemplos a reforma do ensino (total, não apenas da universidade) ou a organização da economia, de que é estandarte a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, mas também a aposta em modelos embrionários de industrialização (de inspiração colbertista, é certo), que os nossos “amigos” ingleses trataram de arrasar, “en passant”, aquando das invasões francesas... Em suma, quis mudar tudo e tudo mudou. À força, claro. Já se disse que era um tirano da pior espécie. A perseguição à velha aristocracia, simbolizada pelo abjecto processo dos Távoras, ou a expulsão da Companhia de Jesus são as faces mais visíveis do estabelecimento musculado de uma nova ordem. Fazia sangue sem pensar duas vezes (o Porto tem escrita a negro, nos seus anais, a repressão da revolta dita dos taberneiros, em 1757). Era um homem do seu tempo? Já vi José Hermano Saraiva dizer a mesma coisa a respeito de Salazar. Porventura seria. A cada um caberá dizer se isso faz dele o Grande Português.

Vasco da Gama
O Gama era um soldado, não um navegador. E não é absolutamente certo dizer que “descobriu o caminho marítimo para a Índia”, como nos ensinaram nos bancos da escola primária. Antes cumpriu esse caminho. A viagem de 1498, que vinha sendo programada desde o reinado de D. João II, não era inteiramente no escuro. Houvera aproximações ao Índico, feitas por agentes portugueses (já atrás referi a viagem de Afonso de Paiva e Pero da Covilhã). O piloto de Melinde, de que Camões fala nos Lusíadas, estaria já apalavrado quando a armada do Gama lá chegou. Mas é certo que, apesar de o caminho estar de algum modo preparado, a viagem foi um salto no desconhecido, a entrada num outro mundo, de outras gentes e de outros hábitos, que veio dar substância ao período mais dourado da existência lusa. O Gama é grande por ser um símbolo de viragem. Mas não é o mentor da viragem.

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2 comments | sábado, janeiro 20, 2007

Soubesse fechar portas e não espreitaria por elas, para ver, nas alegrias alheias, estampadas as minhas misérias.

0 comments | quinta-feira, janeiro 18, 2007

A verdade é que estou mesmo cansado. Apesar de ter o blogue nas mãos, as mãos têm pouca vontade de mexer. E até tenho assuntos, como a histeria dos grandes portugueses - uma vez mais - ou essa ideia mirabolante do professor único para o primeiro ciclo, mais um esforço no nivelamento por baixo. Talvez ainda vá a tempo noutro dia. Para já, "Get back", Fonte das Virtudes! Os Beatles, no telhado da Apple Records, em Abbey Road.

0 comments | domingo, janeiro 14, 2007

Humphrey DeForest Bogart: morreu há 50 anos um homem que também esteve à frente do próprio tempo.

1 comments | sexta-feira, janeiro 12, 2007

Esta semana, uma nova edição da "folha paroquial" de Rui Rio - intitulada "Porto sempre" - estava nas caixas de correio dos portuenses. Folhear aquilo de uma ponta a outra, para quem anda nisto dos blogues, é encontrar um manancial de posts. Mas não quero ir por aí, pelas notícias de capa que não aparecem dentro, pelos entrevistados induzidos a responder em aprovação à obra do mestre (v.g. Avenida dos Aliados e corridas de automóveis), pelo uso de um órgão municipal para as politiquices dos eleitos locais ou pel apresentação, sob a forma de denúncia, os testemunhos da própria incompetência (uma página sobre as pichagens em espaços públicos). Interessa-me, neste momento, uma nótula impressa na página 17, que a seguir transcrevo:

«A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) está a ponderar a possibilidade de equiparar o site da Câmara Municipal do Porto [aqui viria o link, mas já se sabe que eu não faço ligação para essa coisa] aos outros media electrónicos, conferindo-lhe o estatuto de órgão de comunicação
social.
.
«A atribuição dessa classificação – caso venha a concretizar-se - decorre do interesse mediático que o espaço electrónico da autarquia portuense tem vindo a suscitar, pelo seu conteúdo informativo, noticioso e até interventivo.»

Isto levanta problemas de ordem variada (os mesmos que decorrem do estatuto conferido a órgãos oficiais de partidos, mas não só). Mas também não irei por aí. Apenas pretendo manifestar a minha repulsa pela circunstância de a página oficial da cidade onde nasci e vivo ser, neste contexto de intimidade com a estranha ERC, tudo menos aquilo para que deveria estar vocacionada. É um órgão de propaganda mal concebido e incompreensível, por exemplo, para um forasteiro que queira descobrir o Porto, como eu tantas vezes faço em relação a outras cidades, portuguesas ou estrangeiras.

P.S. - Será que, a seguir em frente esta bizarra evolução, o dito site passará a ser "regulado"? Afinal, sempre haverá uma vantagem...

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Como em cada adepto de futebol há um treinador de bancada, também em cada blogueiro há um filósofo pronto a revelar novas verdades sobre a humana condição, ou – sendo esta a mais frequente no que ao assunto em apreço respeita – a mergulhar num atoleiro de dúvidas do qual não sairá nem, porventura, quererá sair. Ora, quero eu dizer da forma mais terra-a-terra que conseguir, o referendo de Fevereiro não vai determinar a oficialidade mental do país em relação ao aborto, e só muito tenuemente pode ser encarado como um problema ontológico, cuja saída vinculará perpetuamente o atormentado votante. Com o pragmatismo que a questão exige, o que está em jogo no referendo é decidir se o país continua, ou não, a aplaudir o silencioso consentimento de abortos feitos em vão de escada, de situações dramáticas (até de morte) que daí advenham, de exercício não autorizado de práticas clínicas, de envio para tugúrios clandestinos de pessoas já mergulhadas em dramas, de perseguição às mulheres (ou, igualmente chocante, de achar que o caminho é ter uma lei que, afinal, não deverá ser posta em prática)... A despenalização não é a liberalização: só assim pensa quem tem o descaramento de admitir que a decisão é tomada de ânimo leve. A despenalização é um passo no caminho da decência do Estado. Nada tem a ver com religião ou com ideologia. Porque religião e ideologia só obrigam quem quer, enquanto a lei todos obriga.

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0 comments | quinta-feira, janeiro 11, 2007

Foto de POS
FLUP, 2007

Isto de andar andaime acima andaime abaixo cansa. Tira a vontade de blogar. Para a próxima, uso o elevador, mas os elevadores, no edifício que a foto mostra, são mais lentos do que a evolução das mentalidades portuguesas. Isto porque o ambiente de pré-qualquer coisa em que o país vive, a pensar no dia 11 de Fevereiro, só me faz pensar em lentidão. Lá iremos, provavelmente.

1 comments | segunda-feira, janeiro 08, 2007


David Bowie faz hoje 60 anos. É mais um ou menos um, pouco importa, mas a gente tem isto de atribuir um qualquer valor místico aos números redondos (e este também é o meu ano redondo...). Seja como for, a FdV não pode passar ao lado da efeméride, tratando-se de um dos mais extraordinários músicos do nosso tempo, que fez quase toda a carreira estando à frente desse tempo. Chega de paleio. Bowie está aqui de novo. Carreguem no play e ouçam uma versão (reduzida mas surpreendente) de "Life on Mars?", tema do álbum "Hunky Dory" que o artista (e ponham muitos ás grandes em Artista) recuperou (em 1999 ou 2000, qualquer coisa por aí) para o programa "Storytellers" do canal VH1 (embora isto tenha sido gravado da MTV, vai dar ao mesmo). A acompanhá-lo, o ultratalentoso Mike Garson (é o pianista de "Aladdin Sane", está tudo dito).

1 comments | sexta-feira, janeiro 05, 2007

Foto de POS
Passeio das Virtudes, Porto

Estimados clientes, a gerência, mesmo sem fechar o estabelecimento para balanço, ao que seria a época apropriada, anda atarefada noutros assuntos, pelo que pedimos a vossas excelências que não se zanguem muito com a irregularidade do blogue, já dele pouco regular. Muito obrigadinho, como diz o dono de um café aqui ao lado.

1 comments | terça-feira, janeiro 02, 2007


Ir ao cinema é das coisas que nunca me importei muito de fazer sozinho, mas há contrariedades. Vi “Babel”, de Alejandro González Iñárritu, e, enquanto deixava a sala cheia, rodeado de gente, suponho que teria um ar abananado e sei que disse de forma audível, duas ou três vezes, “que grande filme!”. Porquê? Creio que continuarei alguns dias a tentar perceber porquê.

As reticências motivadas pelo total aplauso da crítica à última obra do cineasta mexicano, autor de “Amores perros” e “21 gramas”, não eram muitas, se bem que esse tipo de unanimidade encha de pulgas a retaguarda das minhas orelhas. Afinal, não há que vacilar. “Babel” é algo de superior. Porquê? Creio que continuarei alguns dias a tentar perceber porquê.

Vamos lá ver se saímos disto. O problema não está em perceber ou deixar de perceber o filme. Não é novo sermos confrontados com o paralelismo de acções, tempos e lugares que se entrecruzam e que, progressivamente, vão ganhando a unidade que já nem nos deixa de boca aberta, pois é mesmo isso que esperamos. González Iñárritu faz isso muito bem, muito bem mesmo, mas um grande filme é mais do que uma grande obra cinematográfica. Porquê? Creio que continuarei alguns dias a tentar perceber porquê.

Adiante. Babel, Babilónia, incomunicabilidade, incompreensão, diferença, divergência, incongruência, estranheza, preconceito, medo... Poderia desfiar aqui dicionários inteiros em busca da palavra certa. E vou escolher uma: Saramago escreveu sobre a cegueira; “Babel” é sobre a surdez.

A surdez. Também a surdez, em sentido estrito, está no filme, uma entre tantas incompatibilidades de linguagem, de mentalidade, de cultura... Mas todo o filme é o sentido lato da surdez. Dos enganos. Não o vou contar, não estou aqui para contar filmes, mas esta história, todos os pormenores desta história, embrenha-se em nós, ineludível, inelutável, indelével. Porquê?...

Porque somos nós. À medida que aprofundamos a reflexão sobre o filme, é isso que vemos. Nós. Todos nós, únicos. Gritando na escuridão, sofrendo porque nunca plenamente ouvidos. Primeiramente, o que vemos é a surdez dos americanos, os polícias do mundo que tantas vezes ouvem o que querem e o que querem é o que não deviam querer. São os americanos que vêem terrorismo onde há muçulmanos, são os guardas fronteiriços que vêem lixo onde há mexicanos... É o muro que se constrói ao longo da fronteira, que não se vê, mas que está erguido um pouco por todo o filme. Mas o filme não é sobre americanos. A surdez não é americana, é global
(até a surdez dos jornalistas lá está, o falseamento de factos que a febre mediática gera, porque os media ouvem-se demasiado uns aos outros e deixam de auscultar o mundo)
mas não é só isso, não é só isso...

“Babel” somos nós. O filme é tão marcante porque é, afinal, sobre tudo. Sobre todos. Sobre a justaposição de milhões e milhões de universos em que vivemos, pois cada homem é um universo, cada mulher é um universo... e todos falam, de certo modo, línguas individuais. Todos esbarram, num ou noutro momento da vida, na surdez do outro. Porque todos temos essa limitação desde que uma torre foi erguida em Babilónia, para chegar aos céus. Porque todos – ocidente, oriente, países, nações, grupos, famílias, indivíduos – apenas logramos ouvir, muitas vezes, o que releva dos nossos valores. Porque todos julgamos os outros, diferentes, à luz dos nossos valores. Porque só os nossos valores têm validade, todos os outros – os outros valores, os valores dos outros – correm o risco de esbarrar na nossa altiva surdez.

“Babel” é um filme sobre tudo. Sobre todos. Sobre a enorme colmeia, como a de Cela, maior do que a de Cela, onde as abelhas perderam a capacidade de agir em comum. Somos nós. Parece-me que não há melhor definição para o que é uma obra-prima.