Somos o que julgamos ou julgamos o que queremos ser? Ou o que julgamos ter aprendido? A História com agá maiúsculo é uma coisa peculiar, porque grande e minúscula. Confuso? Talvez não o seja assim tanto, se o pensarmos à luz deste passatempo dos “Grandes Portugueses”, uma ilusão de fenómeno, porque toda a transcendência subjacente está no meio e não na mensagem, isto é, a televisão poderia transformar a produção de colheres de pau em desígnio nacional sem dificuldades de maior. Tal como os agentes políticos de sempre, por exemplo, fazem com a exaltação do passado, esse tal conceito ao mesmo tempo grandioso e redutor.
Mais confuso ainda, está visto. Toca a reformular. A linha de fronteira traça-se entre essa História maiúscula sobre a qual todos têm opinião (e ainda bem que assim é) e a historiografia, que devemos pintar com essa minúscula modéstia, a penosa construção parcelar do conhecimento que temos do passado, explicando-o e descrevendo-o sempre com generosa aplicação de reticências. Essa História que “ensinam nas escolas” (talvez já não tanto), essa História dos programas televisivos do “príncipe dos comunicadores”, tem uma roupagem definitiva, mesmo que lha não ponham explicitamente, enquanto a historiografia enverga as tímidas vestes da probabilidade, da proposta. A História é uma mitologia, enquanto a historiografia resulta, muitas vezes, na desmontagem de mitos. A primeira inspira mais, porventura, a segunda impacienta-se sem se resignar.
Quando o povão (e todos somos povão) é chamado a escolher o Grande Português, com maiúsculas à escala da História, faz uso dessa matriz mitológica que aprendeu na escola, na rua ou na mesa de café. É no campo do mito, portanto, que a votação se torna reveladora. Isso é importante? Claro que é, se o entendermos. A outra via, a do não entendimento, é sempre perniciosa.
Assisti, parcialmente, a mais um debate televisivo sobre este passatempo dos “Grandes Portugueses”. A ele voltarei. Agora, registo apenas este mundo de fantasmas do passado remoto e de um passado tão fresco que ainda temos por presente. Talvez o próprio programa, ou o que dele resultar, seja o fantasma do futuro, para que se complete o trio que Dickens fez desfilar frente a Ebenezer Scrooge. Os nomeados são dez, o dobro do normal numa categoria dos Óscares. Os portugueses votarão naqueles que mais os impressionam. Na Fonte das Virtudes ficam, agora,
impressões sobre os próprios, escritas de cor, num momento de insónia
(e publicadas agora porque não tenho net em casa...).
D. Afonso Henriques Dizer que o primeiro rei de Portugal inventou isto é, de certo modo, uma verdade irrefutável. Mas foi, por isso, um grande português? Isso já não é tão fácil de dizer. Suponhamos que eu fundava o F. C. Porto. Isso fazia de mim um grande portista? Não necessariamente, pois seria necessário que, em minha vida, o conceito de portista ganhasse forma e relevância, para que eu pudesse ser portista, primeiro, e só depois grande. Ora, o “Conquistador” quis ser rei, não quis fundar uma pátria. Porque, quando ele viveu, a “pátria” era o rei e as imbricadas relações de vassalidade que nele acabariam sempre por desaguar. Um chefe militar, um “primus inter pares”. Certo é que o desgraçado que vivia na base da pirâmide, a esmagadora maioria da pequena população, não tinha qualquer noção de portugalidade nem saberia quem era o rei, admitindo-se que sabia da existência desse senhor acima dos restantes senhores. Fez Portugal? Sim. Conquistou Lisboa aos mouros? Pois... Isso torna-o símbolo máximo de uma nação que não existia? Se calhar, mas a nação não existia mesmo, não apenas quando nasceu, mas, também, quando a morte pôs termo ao longo reinado.
Álvaro CunhalUm grande português fiel ao soviete supremo? Tenham paciência!... Cunhal é, talvez, o símbolo maior da luta contra o Estado Novo. Porém, o comunismo é indissociável do internacionalismo e significaria sempre, se não o fim de Portugal, a anulação de Portugal num contexto que lhe seria superior. Se o que está a ser votado é o “Grande Português”, a escolha de Cunhal não faz sentido, se bem que se compreenda a inclusão do líder histórico do PCP na lista dos “dez mais”, resultante de um esforço de mobilização motivado, em grande parte, pelos ventos que anunciavam forte votação em Oliveira Salazar.
António de Oliveira SalazarUm parolo. Salazar foi, acima de tudo, um parolo. E isso não é menorizar o autoritarismo, a repressão, o silenciamento, a guerra... Dizer que Oliveira Salazar é a causa do nosso atraso é injusto, se a análise for fria, na simples medida em que Portugal foi sempre um país atrasado. Mesmo quando cresceu e teve hegemonia marítima, nunca se desenvolveu. Mas que o homem contribuiu, fortemente, para o nosso atraso, isso é outra coisa. Metade do século mais alucinante da história universal, vivido sob a beatífica ditadura nascida em Santa Comba Dão, foi vivida por Portugal ao ritmo das colheitas e dos sinos nos campanários. Orgulhosamente sós. Portanto, uma grande bosta.
Aristides de Sousa MendesUma grande pessoa, talvez ainda insuficientemente estudada, daí revestida, também, da dimensão mítica que lhe é atribuída. Mas há grandes pessoas em todo o lado, portuguesas ou não. O cônsul em Bordéus, que ajudou uma multidão de judeus, e não só, a fugir às garras do nazismo, foi um homem bom. Como o foi o alemão Oskar Schindler. Mas numa dimensão que, transcendendo a nacionalidade, não é portuguesa. Ou seja, escapa a esse conceito de identidade nacional que parece associado ao programa.
Fernando PessoaUm génio. Um homem atormentado, soturno, místico, que tantas vezes preferia a vida junto de anónimos companheiros de bebedeira. Mas que tinha outra dimensão, outras dimensões infinitamente acima da vulgaridade. Com os outros, os que não partilhavam essa dimensão de vulgaridade em que sobrevivia, apenas aceitava falar de arte, pela arte. E era um génio. “Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”: nunca haverá português pequeno capaz de o pôr nesses termos.
Infante D. HenriqueUm grande português, emblema da nossa universalidade, símbolo da partida para as descobertas. Mas um homem dividido, muitas vezes hesitante entre a guerra no Norte de África e o desbravamento da costa ocidental. Sempre muito cioso do seu património pessoal, que engordou brutalmente ao longo da vida. Mas um homem de visão, sem dúvida, não por querer espalhar a fé ou dar novos mundos ao mundo, mas por adivinhar o único caminho para onde, afinal, nos empurravam a fraca presença nos circuitos comerciais da Europa e a necessidade de contornar o tampão islâmico.
D. João IIIsabel, a Católica, ter-lhe-á chamado “O Homem”. Sem cargas pejorativas, apenas ciente da grandeza que lhe atribuía. O rumo dos povos e das nações é, como o rumo das pessoas, feito de curvas e contracurvas, de caminhos que se escolhem ao arrepio de outros. O “Príncipe Perfeito” esteve com o pai, Afonso V, na batalha de Toro, que não foi uma derrota militar de Portugal, mas anulou as veleidades de união ibérica com predomínio do reino ocidental da península. Há, hoje, historiadores espanhóis (insuspeitos, portanto) a admitir que, caso D. Afonso V tivesse sabido seduzir melhor a aristocracia castelhana, apresentando um bom plano, não teria sido o casamento de Isabel de Castela e Fernando de Aragão a determinar o surgimento de Espanha. D. João II, homem de uma visão extraordinária, poderia ter sido senhor de algo bem maior. Mas não foi, o que não o impediu de ser “O Homem”. Mais do que pela hábil negociação de Tordesilhas, o reinado deste monarca ficou marcado pela acção estratégica, pelo prosseguimento de uma política de expansão que privilegiava o sonho da Índia e, provavelmente, acautelava a posse do Brasil (que algumas teorias não descabidas de sentido admitem ter sido tocado bem antes de Cabral). Toda a viagem do Gama foi construída no tempo de D. João II (a viagem de Afonso de Paiva e Pero da Covilhã, um dos mais apaixonantes episódios desse tempo, merecia mais ampla divulgação). Suspeita-se que tenha morrido envenenado. Ele mesmo era, diga-se, alguém que mandava matar facilmente. Muito facilmente. Mas foi um grande rei. O sucessor, o afortunado D. Manuel I, brilhou, mas em grande parte porque herdou a máquina e a estratégia.
Luís Vaz de CamõesAos dez de Junho de 1580, quando Portugal estava a cair sob o legítimo domínio de Filipe II, que assim foi senhor de um império onde o sol nunca se punha, a morte de Camões estava ainda longe de ser um marco no espírito da nacionalidade. Mas é-o, ainda hoje. Dele é o “Dia de Portugal”, a ele não faltaram engenho e arte para, cantando, espalhar por toda a parte essa nossa grandeza, também ela fortemente carregada de mito, mas sem a qual não somos. Não se diz aqui mal dos poetas.
Sebastião José de Carvalho e MeloUm tirano da pior espécie. Mas iluminado. O Marquês de Pombal, embaixador em Viena e Londres, aprimorou lá por fora as estratégias políticas e cimentou a ideia de conceber um destino para o país. Os lisboetas associam-no ao terremoto de 1755 (que destruiu todo o Sul do país, não apenas a capital...), mas a verdade é que Pombal foi um génio reformista, cuja obra está ainda, de várias maneiras, estampada na nossa organização presente. Figura que nunca poderia gerar indiferença, fez com que um largo lapso temporal do século XVIII seja intitulado de “período pombalino”. Ou seja, deixou a marca por tudo quanto era lado, podendo ser dados como exemplos a reforma do ensino (total, não apenas da universidade) ou a organização da economia, de que é estandarte a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, mas também a aposta em modelos embrionários de industrialização (de inspiração colbertista, é certo), que os nossos “amigos” ingleses trataram de arrasar, “en passant”, aquando das invasões francesas... Em suma, quis mudar tudo e tudo mudou. À força, claro. Já se disse que era um tirano da pior espécie. A perseguição à velha aristocracia, simbolizada pelo abjecto processo dos Távoras, ou a expulsão da Companhia de Jesus são as faces mais visíveis do estabelecimento musculado de uma nova ordem. Fazia sangue sem pensar duas vezes (o Porto tem escrita a negro, nos seus anais, a repressão da revolta dita dos taberneiros, em 1757). Era um homem do seu tempo? Já vi José Hermano Saraiva dizer a mesma coisa a respeito de Salazar. Porventura seria. A cada um caberá dizer se isso faz dele o Grande Português.
Vasco da GamaO Gama era um soldado, não um navegador. E não é absolutamente certo dizer que “descobriu o caminho marítimo para a Índia”, como nos ensinaram nos bancos da escola primária. Antes cumpriu esse caminho. A viagem de 1498, que vinha sendo programada desde o reinado de D. João II, não era inteiramente no escuro. Houvera aproximações ao Índico, feitas por agentes portugueses (já atrás referi a viagem de Afonso de Paiva e Pero da Covilhã). O piloto de Melinde, de que Camões fala nos Lusíadas, estaria já apalavrado quando a armada do Gama lá chegou. Mas é certo que, apesar de o caminho estar de algum modo preparado, a viagem foi um salto no desconhecido, a entrada num outro mundo, de outras gentes e de outros hábitos, que veio dar substância ao período mais dourado da existência lusa. O Gama é grande por ser um símbolo de viragem. Mas não é o mentor da viragem.
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