Dezembro, vinte e cinco, pego no volante e levo o carro que me leva, em círculos, pelas ruas desertas. Pelo deserto do amor que se fecha nas casas e foge do frio, da vergonha, da pobreza, da fome. Dia de Natal, nada menos do que um entre todos os ciclos de vinte e quatro horas, mais coisa menos coisa, em que a rotação do globo nos dá noites e dias, claridade e escuridão, sol e sombra. Brilho e penumbra, não necessariamente em função de o sol ir alto ou estar adormecido.
Vou pela cidade perdida em busca de fotografias, mas decido não pegar na máquina. Registo com os olhos, envergonhado, porque o deserto das ruas, em dia de Natal, está onde vemos gente. Está no arrumador que persiste na busca da moeda, mesmo quando ninguém pára. Está nos miseráveis que se juntam em bancos de jardim, repartindo vinho de pacotes e comida recolhida na caridade, acenando aos tais condutores que não param. A mim, também. Está em cobertores moldados aos corpos que neles se enroscam: na escada do velho hospital; na entrada deste, daquele e daqueloutro prédio; no aconchego de agências bancárias que os clientes não se atrevem a usar. Não é nas pedras que há deserto. Nem no trânsito ausente.
O Natal não se transformou agora nisto, já assim é há muito tempo. Ao ser transformado em “festa da família” tornou-se mais isolamento do que partilha. Isto pode parecer horrível, mas o momento serve para que os laços de proximidade se apertem, para que haja uma consciência de clã inviolável, para que o sangue se imponha a todas as outras formas de partilha, mesmo que apenas naquele momento em que o bacalhau é comido e o amor é mascarado com embrulhos reluzentes. Na rua e em todas as outras formas de solidão, os resíduos. Aqueles em quem há organizações que pensam, porque a sociedade vai sempre criando organizações para poupar embaraços à maioria que se desobriga.
Há tanta beleza no Natal! Nas crianças, cuja alegria nos alimenta a alma, no sentimento de renascer no abraço aos que nos são mais próximos... até na comida que nunca mais acaba. Mas não é um tempo fraterno. A miséria embaraça-nos mais, dói-nos mais, porque interfere no egoísmo congénito que em todos existe. Mas é aos miseráveis, massacrados pelo simbolismo de rituais de que foram excluídos, que o Natal mais dói.