Douro com ponte e barco, visto da muralha medieval, Porto“Por isso não surpreende que a televisão, epicentro da difusão de massas, sediada em Lisboa, emitida de Lisboa, e sobretudo para Lisboa (excepto uns incêndios e umas desgraças lá na terra para entreter a malta na silly season), seja o veículo por excelência da pronúncia entre o posh e o kitsch com que seremos, slowly but surely, colonizados.”A frase com que abri foi retirada do blogue
Causa Nossa. É atribuída a um leitor, identificado como Vasco P., que comenta a série de textos sobre “Lisboetês” escritos por Vital Moreira. Servirá, aqui, de pretexto para discorrer sobre questões que vêm sempre a propósito.
Como já disse noutras ocasiões, talvez com palavras parecidas, não temos (nós, os outros) de nos preocupar muito com os lisboetas, pois eles não vivem os problemas que sentimos (nós, os outros). É connosco (nós, os outros) que temos de nos preocupar, pois somos (nós, os outros) os maiores fornecedores de matéria-prima para a produção de lisboetas, desde que o tempo é tempo.
Peço que compreendam, desde já, que não quero acicatar guerras Porto-Lisboa, embora admita que me possam imaginar nesse caminho. Vou dar exemplos do Porto, porque daqui sou e aqui vivo, mas o que quero é falar de uma deficiência estrutural que destrói todo o país, desde sempre. Há um par de anos, um colega, que trabalha na delegação de um jornal sedeado em Lisboa, contou-me que os chefes lá de baixo pensavam que ir do Porto a Bragança, de automóvel, era coisa para meia hora. Estamos a falar de pessoas supostamente esclarecidas, que, pelos vistos, nem são capazes de localizar as capitais de distrito num mapa em branco, porque, provavelmente, nunca tiveram nem terão qualquer desejo de conhecê-las. Este tipo de lisboetas (estive quase a escrever, com farta dose de injustiça, “o lisboeta-tipo”) come e respira a mesma mentalidade que, em tempos, pôs nomes às províncias reflectindo o próprio ponto de vista (Trás-os-Montes, Alentejo...) ou é incapaz de descrever uma viagem de 300 quilómetros sem recorrer à rosa-dos-ventos (“fui ao Norte”). Vivem em circuito fechado, o resto do país é uma maçada com que têm de lidar de vez em quando, quanto menos melhor. O problema, como nota o referido Vasco P., está na circunstância de essa suposta auto-suficiência ser imposta a todo o país pela televisão, molde privilegiado da mentalidade unificada (lá ia eu escrever “mediocridade unificada”).
Duas situações vividas pela minha cidade, nos últimos tempos, complementam-se para explicar como este mal funciona: o fecho (espero que suspensão temporária) de “O Comércio do Porto” e a nova polémica em relação ao alargamento da rede do Metro do Porto.
Comecemos com a segunda. O Governo entendeu definir dois grandes investimentos estratégicos para o país, sem o pudor de disfarçar que está a definir dois grandes investimentos para Lisboa, cujo valor estratégico não é isento de dúvidas. Se o aeroporto é uma questão obviamente lisboeta, pois destina-se a servir a cidade, contribuindo para acentuar a circunstância de Lisboa ser um eucalipto gigante que seca tudo em redor, atraindo pessoas, empresas e investimentos, já o TGV poderia levantar mais dúvidas, não fosse os governantes defenderem que é um imperativo estratégico ligar a capital portuguesa ao resto da Europa através da rede de alta velocidade. Enquanto isso, o Executivo decide travar o alargamento programado do Metro do Porto, vital para a área metropolitana, por promover a mobilidade das pessoas, e para os cidadãos, para poderem usufruir de um transporte público fiável e de qualidade. Para o Porto e concelhos limítrofes, este projecto é verdadeiramente estratégico. Abstenho-me de comentar a gestão, porque não tenho o conhecimento que me permita fazê-lo, embora tenha de pôr umas reticências por causa do protagonismo dos autarcas. Porém, a urgência de pôr a rede a funcionar, por ser um imperativo estratégico, deveria impor empenho e rapidez na resolução dos problemas.
Quem decide? Lisboa. O que é “Lisboa”? Para o que aqui interessa, é uma mentalidade emanada de centros de decisão fechados neles mesmos, sejam políticos ou empresariais, bem como do monopólio de fazedores de opinião de Portugal. Mantenho o que escrevi, a 4 de Julho de 2003, nos primórdios do blogue Cerco do Porto:
“Mais do que política ou economicamente, a tentação centralizadora da capital reflecte-se no proteccionismo endógeno dos lisboetas, sejam eles de nascimento ou adoptivos. E o paradigma é a televisão, matriz do pensamento colectivo destes tempos, feita essencialmente a partir de Lisboa e em função da vidinha lisboeta: os actores de Lisboa dão a conhecer os actores de Lisboa, os jornalistas de Lisboa dão a conhecer os jornalistas de Lisboa, os parasitas de Lisboa dão a conhecer os parasitas de Lisboa. Portugal assiste.”
Está o problema em Lisboa? Talvez não. O fecho de “O Comércio do Porto” é sintomático da forma como nos desobrigamos (nós, os outros) de lutar por valores nossos, por direitos nossos ou, até, por manias nossas. É perfeitamente legítimo que haja jornais de expressão nacional feitos a partir do Porto (ou de Bragança, ou de Faro, ou do Pulo do Lobo, mas isso tudo é mais improvável), veiculando ideias do Porto e assentando em modos de ver do Porto, algo que transcende largamente o mercado do Bolhão ou o Estádio do Dragão. É legítimo, benéfico e exigível. Porém, como demonstra o período negro vivido no “Comércio”, trata-se de algo muito difícil, porque as pessoas de todo o país são, num processo contínuo e quase inexorável, mergulhadas na dormência que lhes é injectada pelo predomínio lisboeta nos media: somos um país muito pequeno, as rivalidades não fazem sentido, corremos todos para o mesmo lado, pensamos todos da mesma maneira, somos todos do Benfica (abrenúncio!...), comemos todos caracóis, temos todos as mesmas necessidades, gostamos todos de fado, queríamos todos que o cardeal Policarpo fosse Papa...
É certo que há muitas rivalidades que não fazem qualquer sentido, como certo é que não somos todos do Benfica. Mas o processo de que atrás falei leva a que sejamos um país mais pobre. E a culpa está em nós (nós, os outros). Está nos que, em busca de progresso profissional, cedem à tentação de ir para Lisboa e entram no esquema. Está nas empresas que têm de ir para Lisboa para se aproximarem dos centros de decisão. Está na vergonha que nos fizeram ter (não a todos, não a todos...) da nossa identidade. Porque está na desistência dos leitores de jornais que lhes falem de problemas próximos, preocupando-se mais com as pseudo-notícias de trica política orientadas pelo “mainstream” lisboeta. Porque está na falta de coragem para que nos imponhamos (nós, os outros), não como alternativa mas como gente que tem alma e dela não quer prescindir.
Quando o citado Vasco P. fala na “
pronúncia entre o posh e o kitsch com que seremos, slowly but surely, colonizados”, é uma voz de desistência. Se assumirmos essa colonização como lenta e certa, estamos a admitir que, um dia, só haverá lisboetas em Portugal. Nem os lisboetas quererão isso, pois deixarão de ter de quem diferir, mas nós, os outros, temos a obrigação moral de o impedir.