A convite do Sindicato dos Jornalistas, participei, há dias, no segundo debate do ciclo "Conferências de Outono" (o programa segue no fundo do post), consagrado ao tema "Ainda sabemos escrever?". Na mesa estava também o escritor Mário Cláudio, mas faltou o terceiro convidado (José Mário Costa, responsável do site "Ciberdúvidas"), pelo que o quadro em torno da qualidade e da importância da escrita ficou incompleto, embora, ao que me disseram, a coisa não tenha corrido mal de todo. Pediram-me um texto, no qual baseei a minha intervenção, e saiu isto:Reencontrar o prazer
Portugal é um jogo de sombras. Sítio onde a aparência vence a excelência, este é um país que exagera as glórias do passado, as venturas do futuro e, claro, as conquistas do presente. É isto que somos, nisto vivemos, disto dificilmente escaparemos sem fugir de nós mesmos. Os títulos académicos servem para pôr em cartões de visita e cheques bancários, o sucesso escolar é mais indicador estatístico do que promotor de competências, a televisão enche milhões de vidas, do lazer à ilustração do indivíduo. Assim, quando se pergunta se ainda sabemos escrever, talvez tenha mais pertinência indagar se conseguimos ler.
Não existe uma resposta certa, nem o negro intróito desta exposição se insinua como verdade universal. Mas, sendo eu convocado a reflectir sobre como se escreve na Imprensa periódica portuguesa, tenho de seguir este rumo: não se escreve bem, na medida em que se lê mal.
Trabalhar num diário nascido em 1888 implica, mais tarde ou mais cedo, ouvir alguém dizer que aprendeu a ler com o “Jornal de Notícias”, o que torna mais clara a responsabilidade de quem aí escreve. Hoje, quase 120 anos depois, estar no jornalismo em papel tornou-se causa de dúvidas permanentes, mais existenciais do que metódicas. Queremos saber para quem escrevemos, quem continua disposto a pagar pelo que escrevemos, que nível de exigência têm os leitores, até que ponto sabemos o que eles procuram e até que ponto dar-lhes o que desejam pode sobrepor-se a outros critérios. Tanta dúvida abre caminho a equívocos perniciosos, quando a solução assenta em regras simples: respeitar a deontologia, ter noção do interesse público, ser rigoroso e buscar qualidade na escrita, seja lá isso o que for.
É errado, nesta profissão, desvalorizar a escrita e entendê-la como uma entre várias ferramentas de trabalho. Se a madeira é a notícia, a sagacidade a serra e o rigor a lima, a escrita é formão e lixa fina, é o verniz acetinado que dá vida à peça de marcenaria. É a alma de uma notícia, reportagem, crónica ou mera legenda de fotografia. É uma linha de fronteira entre o exercício técnico e a qualidade distintiva do que é único. A escrita é, enfim, uma das mais importantes armas para que o jornalista não seja reduzido a “produtor de conteúdos”.
Saber escrever, se por isso entendermos o respeito à sintaxe, o rigor semântico ou a abundância do léxico, sempre foi privilégio de poucos. Fazê-lo com arte é engenho dos escolhidos, ou seja, de muitos menos. Significa isso que a massificação do ensino, ou, se preferirmos, a purgação alfabetizadora de um país, dificilmente poderia resultar, neste curto prazo de algumas décadas, num cenário perfeito, atendendo a que a escola – amiúde refém do cumprimento de objectivos institucionais ou comerciais – não pode inculcar nos alunos algo que, sejam ou não intelectualmente estimulados pelos mestres, só dos alunos depende: a apetência pelo prazer.
Sem prazer na escrita não sabemos escrever, e esse gozo educa-se pela leitura, tal como o treino do palato nos leva a descobrir iguarias pela vida fora, mostrando que há mundo para lá do bife com ovo a cavalo. Mesmo quando se escreve num jornal, que servirá para embrulhar peixe e para tapar montras, há que tentar a originalidade em cada texto, seja a reportagem de uma vida ou a breve que faltava para encher a página. Fugir ao lugar-comum, escapar ao vocabulário rançoso e estimular o público deve ser um desafio para cada jornalista, e isso tanto pode ser feito numa notícia, respeitando as regras formais do género, ou numa crónica, voando com as palavras sem perder de vista o leitor, que está em terra. Jornalista e escritor, se bem que possam coincidir na mesma pessoa, são entidades diferentes, e o primeiro tem uma percepção mais próxima da diversidade de quem o lê e da necessidade de transmitir algo a todos. Mas isso não pode coarctar a criatividade. O bom serviço de mesa torna a refeição mais prazenteira do que quando o prato é lançado com estardalhaço. O preço faz a diferença, também nos jornais...
Residirá a raiz do problema, suponho, na forma desastrada como este país tem lidado com a massificação do ensino, a todos os níveis. Reformas sobre reformas do sistema educativo têm servido, quase exclusivamente, para que Portugal tente não deslustrar no retrato europeu. Como se vê nas notícias, temos vindo sistematicamente a perder a batalha da qualificação – e os países do alargamento aí estarão a demonstrá-lo –, não apenas devido ao insucesso escolar mas à circunstância de o êxito ser entendido como mero indicador estatístico, sendo promovido à custa de passagens administrativas (assim é quando os professores são demovidos de reprovar alunos, como acontece de facto), de um sistemático nivelamento por baixo e de muita propaganda. Por trás de tudo isso temos as prolíficas ciências da educação, que dominam as políticas educativas e cuja ânsia de inovar, mudar paradigmas, rever procedimentos ou reformular objectivos está na base de um facilitismo que ajuda o país a afundar-se. Quando a escola quer promover competências ao arrepio da leccionação de conhecimentos, o resultado é gente muito competente em coisa nenhuma. O tratamento dado à literatura nos
curricula do Ensino Secundário é triste estandarte de uma sociedade que parece promover a iliteracia.
É neste contexto que hoje se faz jornalismo. Quem trabalha nas redacções sabe que a retórica passadista é, geralmente, a táctica defensiva dos que se sentem ultrapassados, pelo que não é razoável dizer que hoje se escreve pior ou melhor do que em tempos idos. Mas é notório que se escreve a um ritmo diferente, mais frenético (ou precário), porque a própria vida se transformou, também, numa insana aceleração. A pressa de publicação da notícia, num contexto de feroz concorrência, pode significar deslizes editoriais e, claro, afectar a escrita, pois pode ser igual a pressão do tempo para noticiar um acidente rodoviário, ocorrido em cima do fecho da edição, ou para redigir análises que deveriam ser mais cuidadosamente ponderadas.
Nisto tudo, a responsabilidade é nossa, porque todos somos responsáveis pelo tempo em que vivemos. É certo que um jornal – ainda por cima um jornal diário – é feito no fio da navalha. Nasce e morre todos os dias, como expressa o chavão das redacções. Mas não é menos verdadeiro que podemos fazer algo mais em nome da qualidade: no longo prazo, transformando os portugueses em leitores mais exigentes (transformá-los em leitores já não seria mau de todo) e obrigando a um maior esforço de todos os que escrevem profissionalmente; no terreno – agora –, desenvolvendo uma cultura de exigência em torno da escrita, que deverá ser assumida por todos os redactores e estar reflectida nos mecanismos de editoria e materializada em instrumentos como os livros de estilo.
Quero concluir com a questão fulcral do acesso à profissão de jornalista. A implementação e a solidificação entre nós das licenciaturas em Comunicação Social foi um passo decisivo para dignificar o jornalismo. Todavia, os passos decisivos não podem ser corridas desenfreadas e sem rumo. A origem única pode gerar o pensamento único, unificando também as práticas discursivas. Desencantem-se os que imaginam o jornalista como ser isento, impoluto e invariavelmente equidistante. Esses valores, embora utopias que devemos manter vivas, configuram uma impossibilidade, pelo que a única forma de assegurar o pluralismo é a diversidade, associada à capacidade de escolha dos leitores. Sempre a diversidade de origens dos jornalistas foi garante de maior riqueza do jornalismo, e, num momento em que as políticas empresariais resultaram no rejuvenescimento coercivo das redacções e na perda de memória, devemos lutar para que essa riqueza não se perca.
Desconfiemos, portanto, de movimentos corporativos que querem assumir o controlo do acesso à profissão. E saibamos ver, também, a unificação discursiva que a concentração dos media pode gerar, combatendo-a com a melhor arma que nos é dada: buscar a excelência a todos os níveis, dos quais a escrita nunca será o mais baixo.
Pedro Olavo Simões
Outubro de 2007++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++«SJ realiza "Conferências de Outono"«O Sindicato dos Jornalistas (SJ) vai promover, nos meses de Outubro, no Porto, e de Novembro, em Lisboa, um ciclo de debates intitulado "Conferências de Outono" . Temas como o acesso à profissão e o seu futuro, as relações de género nos Média, o caso Maddie ou as novas tecnologias serão tratados ao longo de nove semanas por mais de três dezenas de convidados.
No Porto, os debates realizam-se todas as segundas-feiras de Outubro, às 21 horas, no auditório da Cooperativa Árvore, que apoia a iniciativa. Em Lisboa, os encontros têm lugar todas as quartas-feiras de Novembro, também às 21 horas, na sede do SJ. As conferências destinam-se a jornalistas, estudantes e professores e investigadores da área do Jornalismo e das Ciências da Comunicação, mas são também abertas ao público.
«No Porto, o programa das Conferências é o seguinte:
«01.OUT - "Acesso à profissão: O Caminho do Purgatório?" – Intervenções de Alfredo Maia (Presidente da Direcção do Sindicato dos Jornalistas), Fernando Zamith (jornalista na agência Lusa e docente na Universidade do Porto) e Cynthia Valente (jornalista no "Destak") .
«08.OUT - "Ainda sabemos escrever?" – Intervenções de Mário Cláudio (escritor e docente da Universidade do Porto), Pedro Olavo Simões (jornalista no "Jornal de Notícias" e bloguer do Fonte das Virtudes) e José Mário Costa (responsável pelo sítio Ciberdúvidas).
«15.OUT - "Não te rias que é pior: Humor, Jornalismo e Política" – Intervenções de Manuel António Pina (jornalista e escritor), Carlos Romero (jornalista) e José Manuel Ribeiro (cartunista em "O Jogo").
«22.OUT - "Vamos acabar no Museu? O futuro do jornalismo" – Intervenções de Luís Humberto Marcos (antigo jornalista, director do Museu da Imprensa), Miguel Carvalho (jornalista na "Visão") e Jorge Fiel (jornalista no "Expresso").
«29.OUT - “Ainda podemos escrever? - Incidências do Estatuto do Jornalista e das Novas Leis Penais” – Intervenções de Rui Pereira (jornalista e docente da Universidade do Porto), António Arnaldo Mesquita (jornalista no "Público) e Horácio Serra Pereira (advogado, chefe do Gabinete Jurídico do Sindicato dos Jornalistas).
«As Conferências de Lisboa, cujo programa detalhado será divulgado em breve, abordarão os seguintes temas:
«- "Do caso Casa Pia ao caso Maddie - Jornalismo sob suspeita: Comunicação Social e Justiça"
«- "Jornalismo, Ciência e Ambiente - Informar para uma cidadania activa"
«- "O Jornalismo tem sexo? - A Comunicação Social Perante as Questões de Género"
«- "Novas Tecnologias - Instrumento Para Uma Nova Ordem da Comunicação".»