Trago-vos um assunto relacionado com a minha actividade profissional, mas que, atendendo a que os frequentadores do blogue serão leitores de jornais, também cá terá cabimento. Tem a ver com a recorrente dúvida entre o uso de "islamita" ou "islamista". Para os cães de guarda da linguagem, só a primeira pode existir. No meu jornal, tal como em vários outros, estamos a usar a segunda quando nos reportamos a integralistas islâmicos, porque chegámos a essa conclusão depois de consultar quem do assunto percebe (de fundamentalistas religiosos, não de dicionários). Como esta questão passa a ser para mim uma espécie de guerra santa, passo a reproduzir o comentário que hoje enviei ao site "Ciberdúvidas":
«Creio que, por vezes, a problematização da língua elude alguns aspectos que deveriam ser tidos em conta, transformando dicionários e compêndios gramaticais em livros sagrados e levando filólogos ou linguistas a alcandorar-se a posições sacerdotais. Tal é notório no debate sobre o uso do vocábulo "islamista", designadamente na imprensa escrita. Tanto o jornal em que trabalho - o "Jornal de Notícias" - como o "Público" optam pelo uso de "islamistas" para designar integralistas islâmicos, sentindo eu o dever de aqui notar que não o fazem de ânimo leve.
«Tudo entronca numa problemática que, decerto, escapa aos fautores de dicionários e aos esclarecedores de dúvidas: a conceptualização em ciências sociais e humanas. Não querendo eu enveredar por dissertações sobre os caminhos metodológicos que traçam diferenças entre ciências ideográficas e nomotéticas, bastar-me-á salientar a importância de determinados vocábulos terem significações específicas. Se ao termo "islamita" é dada uma definição ambígua, podendo, em paralelo, ser usado como partidário do islamismo ou inserido na sinonímia de muçulmano, cria-se um problema que terá de ser ultrapassado pelas ciências que estudam estes assuntos.
«Ora, embora o debate não esteja encerrado nos fóruns das ciências sociais, devo notar que o "Jornal de Notícias", tal como, suponho, o "Público", optou pelo uso de islamistas depois de ouvir académicos que estudam estes assuntos, tendo em conta que "islamistas" não constitui uma aberração no processo de construção vocabular. Tudo parte do princípio - estabelecido no processo de conceptualização que vivem as ciências - de que o islamismo não é o Islão, mas sim aquilo a que poderemos chamar o "Islão político", concepção integralista em que religião e Estado (no sentido lato de organização política) são coincidentes, indissociáveis, inevitavelmente permeáveis entre si. É essa a concepção que redunda no estabelecimento de teocracias e que alimenta o fundamentalismo. Daí surge a necessidade do uso de islamista (um neologismo, seja) para designar aqueles que se integram no Islão político, necessariamente sectários, porquanto a ambiguidade de "islamita" (também sinónimo de muçulmano) pressupõe uma insanável fragilidade discursiva. Se está, ou não, nos dicionários, acaba por tornar-se o menor problema.
«A língua constrói-se a partir da necessidade, e espera-se, de filólogos e linguistas, a agilidade mental requerida por um idioma que se quer vivo e adaptado a contingências presentes e futuras. Tê-la-ão, decerto, pois sabem que, se o não fizerem e permanecerem fechados em torres de cristal, serão co-responsabilizados pela agonia da Língua Portuguesa.»