10 comments | terça-feira, março 21, 2006

Foto de POS
Paranhos, Porto

...e porque nem sempre a vida é feita de sonetos, assinalo a data, de forma pouco ortodoxa, com o "Poema temperamental", de Joaquim Pessoa. Sem ofensa.


Poema temperamental

Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Com certeza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!

Joaquim Pessoa

10 Comments:

Blogger Viagem pelas ruas da amargura said...

Percebo-te, mas, por razões diversas, preferia o "Discurso do Filho da Puta"...

00:10

 
Blogger Jorge Simões said...

Boa lembrança do Dia Mundial da Poesia, embora, pessoalmente, não comemore dia mundial nenhum.
Quanto ao poema, é um pouco longo, incontido... Suponho que seja a intenção. Então, por aí nada de mal. Mas a repetição do refrão transporta-o directamente para o ranking da poesia menor, o que é pena, visto que está bem feito e contém boas ideias.
Abraço.

13:50

 
Blogger POS said...

Esse comentário só serve para estragar o ambiente. Poesia maior ou menor? E daí?... "Por que é que se diz que a arte/ é para certas camadas?"...

16:13

 
Anonymous Anónimo said...

E daí... nada. Entendes como quiseres. Eu acho que o "ó caralho" não se enquadra na estética poética que defendo. Com toda a franqueza, prefiro o outro Pessoa e nem sei qual era o ambiente nem o pretendi estragar. A arte é para certas camadas? Não fui eu quem o disse. Mas posso corroborá-lo, se quiseres. Depende do que se entende como arte. Aliás, não será por causa do "caralho"... O poema que aqui postaste, o preciso poema que aqui postaste, é para certas camadas. Primeiro: é preciso um nível cultural que permita gostar de ler poesia; Segundo: é preciso ter um nível cultural que permita entendê-la; Terceiro: É necessário que a sensibilidade pessoal se dirija para a linguagem especificamente poética.
Para finalizar, a estética "revolucionária pré e pós- 25 de Abril" está morta e enterrada. Não há lugares para Arys dos Santos, salvo nas enciclopédias. As revoluções actualmente necessárias são outras e o mundo não está para brincadeiras. Eu considero o "ó caralho" de uma certa falta de gosto. E estou no meu direito. Nomeadamente, quando emiti uma opinião sobre o poema e não sobre o post...

16:58

 
Blogger POS said...

Tu passas-te, insistentemente...

17:36

 
Blogger Jorge Simões said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

17:49

 
Blogger POS said...

Nota: acabei de apagar um comentário do Master Minder, que é o meu irmão. Censura pura e dura. Posso entender-me com ele pessoalmente. A caixa de comentários é isso, uma caixa de comentários. Não é um fórum de discussão alegremente aberto à comunidade cibernáutica (para mim, a comunidade cibernáutica não existe). Ou seja, o blogue é meu e a mim compete determinar avaliar a pertinência e o bom tom das opiniões. Tem corrido sempre bem e assim continuará.

17:56

 
Blogger Jorge Simões said...

Não há nada para entender. Se queres bom tom, podes apagar igualmente o teu comentário anterior.

18:02

 
Blogger POS said...

@--;---

18:04

 
Anonymous Anónimo said...

Certo. Tu és o que transmites (espero que isto não seja de mau tom...). :)

18:21

 

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