3 comments | domingo, março 12, 2006

Foto de POS

Muito tempo antes de os neoliberais transportarem o termo “colaborador” para as empresas, esquivando-se a essa dolorosa circunstância de chamar trabalhadores aos que trabalham, já a gente dos jornais usava a palavra para designar os que faziam jornalismo sem serem jornalistas, de papel passado e reconhecimento salarial. Eu, como tantos, comecei por ser colaborador desportivo do “Jornal de Notícias”. Chamo aqui essa circunstância na hora de homenagear o último colaborador da velha guarda, pequeno no físico mas enorme na estatura que o obriga a sair pela porta grande. Ao fim de 42 anos, é impossível que deixe de ter o JN misturado na corrente sanguínea, mas as circunstâncias determinaram-lhe a hora de parar. Vamos, espero que muitos, jantar amanhã com ele. Chama-se Manuel Nunes.

Há uma diferença substancial, porém, entre os colaboradores como eu fui durante dois anos, aqueles que tentam a entrada numa profissão, e os da casta do Sr. Nunes, movidos por uma camisola que decidiram vestir, à margem de outras carreiras, orgulhosos de participar em algo que admiram e sempre ajudaram a construir. Alguns deixaram de cá aparecer porque a senhora da gadanha os levou. Lembro os que desapareceram nestes meus 16 anos de JN: Augusto Cardoso, o grandioso Cardosão; Alves da Silva, o mais madrugador em todo o JN; António Martins Mendes, o decano, atropelado quando rumava à Redacção, já perto dos 90, falecido uns anos depois. Manuel Nunes sai cheio de vida. Porque a vida não se enche dele nem a vida dele termina nesta porta por onde sai.

Trato-o muitas vezes por “presidente”, pois é isso que ele é. O homem que tem dedicado tanta da sua vida ao Sporting Clube Vasco da Gama, que tem feito pela juventude de uma das tantas zonas carenciadas do Porto, com o basquetebol, mais do que tantos e tantos programas saídos das cabeças de madres teresas e padres américos de gabinete. No Parque das Camélias, cujos campos de básquete ficaram cobertos há dois anos, ao cabo de uma muito longa batalha, várias gerações encontraram alternativas àquilo a que os psicólogos chamam comportamentos desviantes.

No JN, Manuel Nunes vem do tempo em que a secção desportiva era formada por dois ou três profissionais, apoiados num batalhão de colaboradores. É o último desse tempo, o último resistente entre tantos homens válidos que, por tuta e meia e com muito orgulho, mesmo não sendo os mais eruditos, contribuiram decisivamente para que aquela casa que tanto amavam se tornasse um fenómeno na Imprensa portuguesa. Manuel Nunes ainda ama o JN e não saberá viver de outro modo. De todos os que conheci, dessa velha guarda, talvez seja o que sempre senti mais vibrante com essa ideia, cada vez mais perdida em todo o lado, de pertencer a uma família de gente que trabalha para o mesmo objectivo. Foi sempre ele o maior entusiasta da festa dos colaboradores desportivos, religiosamente celebrada a cada 10 de Junho. Foi sempre ele, talvez fruto de uma vida desportiva a lidar com jovens, quem melhor fez a ponte entre várias gerações. Foi sempre ele o mais afável de todos.

Amanhã, vamos jantar com ele. Para o celebrar. Não é uma despedida, pois já prometeu que continuará a passar por cá. Sai porque sai, porque a renovação é absolutamente natural. Não é homem de cobrar dívidas, nem admitirá que elas existem, mas a verdade é que representa esse grupo de homens a quem um grande jornal tanto deve, estejam ou não desactualizados (também nós estaremos), sejam ou não dispensáveis (também nós seremos). Por tudo isso, sou eu quem se orgulha de poder, amanhã, brindar com ele ao futuro. E ao nosso JN.

3 Comments:

Blogger Viagem pelas ruas da amargura said...

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02:39

 
Blogger Viagem pelas ruas da amargura said...

O que escreves, POS, sobre o Nunes é pouco. Bem dito, muito bem dito, infinitamente melhor do que, algum dia, por muito tempo de que disponha e inspirado, e transpirado, esteja, poderei ser capaz de dizer.
Apenas sei que os velhotes, os velhotes com quem aprendi o voluntariado e a entrega sem retorno que se visse, por um estado de alma que, se calhar, até já nem existe, estão mesmo a desaparecer.
Provavelmente, eu próprio começo a sentir-me velho... Quarenta e cinco anos de idade é, quase de certeza, muito pouco para tanto, mas começa a ser difícil não ter a nosso lado um velhote - podia, agora, desfiar um rosário finito, mas um rosário deles... - a quem sorrir, piscar o olho, conversar na cantina sobre tudo e sobre nada, com quem falar de um amor que não se explica, que se aprende, se sente, se entranha, nos faz sentir bem e, também, quantas vezes!, nos faz sentir mal. O JN, claro!, que não fiquem dúvidas!
Amanhã (hoje) não vou jantar com ele. Fui apanhado de surpresa, hoje (ontem) à tarde pelo POS com a triste notícia. Mas gostava de, um dia destes, fá-lo-ei, estou certo, lá para a Primavera, inventar o tempo necessário para o encontrar onde o conheci, no Parque das Camélias, no meio das tabelas de basquetebol e da miudagem a encestar com sã teimosia. Porque o amor pelas instituições (pessoas colectivas, como agora se diz) e pelas pessoas (seres humanos simples que têm e respeitam os seus próprios valores) já não existem... Manuel Nunes é, provavelmente, um dos muito poucos desses animais honrados em vias de extinção. E o que aprendi com homens como ele foi muito pouco, por incapacidade e pena minha.
Amanhã estarei mais pobre, não pelas agruras do Mundo, não pelos ajustes salariais, que tardam, mas porque não vou encontrar mais o Nunes aos domingos, firme, hirto, orgulhoso e honrado no seu posto de trabalho.

02:49

 
Blogger POS said...

Deve ser impressão... O sentido do texto não tem nada a ver com isso, e é de fraco gosto deixar desses comentários, num blogue que não é anónimo, assinados por um apetrecho aparador de cabelo. Desta vez fica, em nome do pluralismo.

15:19

 

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