4 comments | domingo, outubro 09, 2005

É com razão que muitos comentadores, entre eles todos os actores políticos que analisam resultados, acentuam o carácter especial de que se revestem as eleições para o poder local. Não o farão, eventualmente, pelas razões que me levariam a concordar. Os comentadores profissionais porque os empregos dependem de alguma contenção, os dirigentes partidários porque lhes importa mais dourar algumas pílulas que têm de engolir. Há quem possa dizer que as autárquicas valem por elas mesmas, por serem o paradigma da democracia em exercício. Eu valorizo-as pelo que revelam. Porque mostram Portugal sem grandes máscaras, o país tal como ele é.

Hoje, Portugal revelou-se um país tacanho, parolo. Um país onde a indigência mental é aceitável, onde todos sabem quem é o José Castelo Branco ou o Zezé Camarinha, onde poucos saberão responder à pergunta imbecil de quem era o presidente da República antes do 25 de Abril. Somos, como hoje conversava com o meu irmão, uma sociedade que valoriza a incoerência e menospreza a inteligência. É a sociedade dos 15 minutos de fama, dos machos latinos que se sujeitam a ser alindados por um "esquadrão gay" (acho que se chama assim), quando na vida comum talvez sejam os reis da homofobia, até porque tal lhes fica bem enquanto emborcam cerveja e comem caracóis com os amigalhaços. Somos a terra das pessoas que se apresentam como razoavelmente formadas e, num concurso em frente às câmaras, dizem sem vergonha que Adolfo Correia da Rocha era o verdadeiro nome de... António Lobo Antunes. Somos o país onde, entre manifestações da mais atroz boçalidade, o veredicto popular transforma em deuses Fátima Felgueiras, Valentim Loureiro ou Isaltino de Morais.

Há-de haver, suponho, gente que caia no chavão de dizer que se envergonha da nacionalidade que tem. Eu não tenho vergonha de ser português, mas tenho vergonha de não sermos capazes de fazer melhor. Envergonha-me que haja movimentos contrários à espantosa progressão que Portugal tem conhecido nos últimos trinta anos. Embaraça-me que, quando era suposto que ao marasmo de uma longa ditadura (provinciana, hermética e limitadora) se seguisse, com toda a naturalidade, uma libertação que tendesse para a elevação da cidadania, haja uma grande corrente antagónica, até contra-revolucionária, se entendermos revolução como o que realmente é, não apenas como um movimento político ou militar.

A contra-revolução é, acredito, movida em grande parte pelo mercado. Em especial, por um mercado particularmente complexo, do qual terei algum à-vontade para falar, que é o mercado da comunicação, porque comandado, com mais ou menos intensidade, por todas as dinâmicas do dinheiro, pedra basilar de todo o poder dos nossos tempos. E as linhas de rumo, do mercado mediático e da indigência, são movidas pela televisão. Dir-me-ão que a televisão que temos é a televisão que têm outros países, mais evoluídos e de gente mais qualificada, mas por as pessoas serem mais esclarecidas é que, provavelmente, não exercerá por lá a mesma influência que entre nós, o reino da iliteracia, do desinteresse, do desrespeito pelo próximo, do crédito para pagar o crédito, do carro bem artilhado à porta da casa onde tudo falta, do passeio domingueiro em fato de treino garrido, da estante com livros dados pelo jornal e nunca abertos, da parabólica pendurada na marquise, do telemóvel estridente em cima da mesa, da chave do carro em cima do telemóvel estridente em cima da mesa, do pente no bolso de trás das calças, da mão oscilante no bolso da frente das calças, do arroto entre gargalhadas, do traque entre gargalhadas, do piropo alarve às meninas que passam, do cheiro a sovaco no autocarro apinhado, do cabelo gorduroso e da unha que se destaca no dedo mindinho...

É a televisão que faz tudo isso? Tudo, talvez não. Mas faz muito. Em vidas cujo único interesse é fixar os olhos no que os programadores impingem, a televisão surge, sem dúvida nenhuma, como a grande entidade formadora, detentora de toda a verdade, produtora de toda a santidade. E assim é porque, funcionando ao abrigo de estratégias exclusivamente comerciais, desenvolveu técnicas de captar audiências sem sequer se pensar à custa de quê. Quem lança um programa em que meia dúzia de pimbalhões andam a ter treinos pseudo-militares pode, certamente, argumentar que quem não gosta pode mudar de canal ou desligar o aparelho. Mas a verdade é que esses programas são pensados para que o público-alvo, que é cada vez maior, seja incapaz de mudar de canal ou de desligar o aparelho. A teledependência é, sabem-no bem os que têm de apresentar bons gráficos de audiências aos accionistas, limitadora do livre arbítrio e condicionadora das vontades. E os produtores de conteúdos trabalham a teledependência com tanto afinco como um químico ligado ao narcotráfico, que gaste os dias e as noites à procura da molécula alucinogénea que crie dependência absoluta à primeira toma.

Atrás das televisões vai a Imprensa, uns mais, outros menos. Porque há sempre públicos-alvos e porque há sempre a necessidade de vender. Por isso é que determinadas publicações, lixo em letra de forma, são sucessos de vendas. É certo que Inglaterra, por exemplo, é o paraíso dos tablóides, mas eles não são dez singelos milhões, isto é, o peso da mediocridade acaba por ser menos influente no todo social. Nós somos poucos, sempre fomos poucos, e isso faz com qualquer oscilação influa no quadro geral de forma bem visível. Ou seja, uma porcaria de um "Big brother", de uma "Senhora dona lady", de uma "1.ª Companhia" ou do diabo que os carregue constitui, num país como o nosso, uma influência muito mais pesada. Se somarmos tudo isso, muitas horas por dia, todos os dias, durante uma série de anos, chegamos mais facilmente à pusilanimidade que nos domina.

Combater este estado de coisas é tarefa demasiada. Estas gerações de boçais produzem, sistematicamente, novas gerações de boçalinhos, alimentados exclusivamente de hamburguers e consolas de jogos, sem qualquer tipo de diálogo com quem os educa, em casa ou na escola (mais em casa do que na escola, evidentemente, pois a escola raramente tem condições para compensar os males causados por pais que se desobrigam). Obesos, rudes, agressivos, ignorantes...

Eu poderia ir por aí fora. Claro que, ao traçar este perfil de um determinado grupo, mesmo sendo um grupo cada vez mais vasto, não quero dizer que este é um país sem esperança, onde todos são medíocres. Claro que isso não é verdade. Mas é essa a sociedade que nos é mostrada pelas eleições autárquicas. Concelho a concelho, freguesia a freguesia, muito mais haveria a dizer, provavelmente. Mas chega, para compreender o estado das coisas, ver que este é o país que elege, aclama e dá notoriedade especial a Isaltino de Morais, Valentim Loureiro e Fátima Felgueiras. Não porque sejam inocentes ou culpados, a Justiça o determinará, caso funcione. Mas porque são sintoma de uma sem-vergonhice que entre nós é regra, simplesmente ao quererem branquear situações em que se viram envolvidos à custa de pretensos julgamentos populares, levados a cabo por gente que, queiramos ou não, não sabe bem o que quer porque sabe pouco de nada. No caso da senhora, então, o escândalo é completo: como justificar a aclamação popular de uma sujeita que fugiu à justiça, valendo-se de fugas de informação, de um estatuto de dupla nacionalidade e dos meios que lhe permitiram subsistir dois anos no quentinho brasileiro?

Respondam vocês, ou ainda me ponho para aqui a escrever que somos um país da treta, uma república dos (é mesmo "dos") bananas, um reino do faz-de-conta. Não me apetece, apesar de já o ter feito. Cada um que pense o que quiser.

P.S. - No Porto, a reeleição de Rui Rio, perfeitamente esperada, apesar do crescendo protagonizado pelo PS, significa uma aposta do eleitorado naquilo que se conhece, ou seja, numa visão limitada do papel da cidade no país e no mundo, numa estatura política meramente técnico-administrativa e numa incapacidade inquebrantável de compreender as opiniões contrárias. Tudo isso, com muita propaganda a uma imagem de seriedade (os virtuosos não têm de se gabar da virtude, digo eu) e, ainda, construindo uma imagem que agrada ao exterior, com polémicas pacóvias, como a questão das Antas ou a guerra contra o Governo, inventada pelo autarca em torno do chamado Túnel de Ceuta (como se a cidade estivesse dependente de um túnel...). Assis seria, eventualmente, um tiro no escuro. Suponho que, daqui a quatro anos, o Porto ainda cá estará. Veremos se continuará parado, como até aqui. Mas isto merece, se calhar, um tratamento mais cuidado.

4 Comments:

Blogger Jorge Simões said...

Por Deus, como escreveste desta feita! Li tudo. Está bem. Como país é que estamos mal e até parece que a noção vai correndo por aí. Se quiseres, faz-me uma visita e dá uma olhada ao texto que escrevi sobre mais ou menos o mesmo, num estilo diferente, claro. Como brinde, ofereço-te um teste de cariz plenamente científico.

02:41

 
Blogger Teófilo M. said...

Isto é o que eu penso

16:22

 
Anonymous Anónimo said...

Sem entrar em conflituos de gerações bacôcos, não podia concordar mais com o que aqui foi escrito.

O problema português está na educação, que recebemos nas escolas e principalmente em casa. Depois do 25 de Abril, o alpinismo social passou a estar orientado exclusivamente para o lado financeiro, esquecendo a cultura e a educação.

Isto tudo, culmina numa crise de valores incrivel.

Vilalao

10:09

 
Blogger AM said...

Caro Pedro

Parábéns pelo excelente texto

Tomei a liberdade de o citar (copiar parte) no Sede.

http://forumsede.blogspot.com/2005_10_01_forumsede_archive.html

Se achar mal, por favor diga.

Obrigado
AMNM

18:21

 

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