Aartois (1997-2005)
Não sei onde fica, o sítio, mas existe. Não sei que nome tem, nem importa. No livro de Paul Auster era Timbuktu, mas pode ser o Jardim dos Ossos ou a Alameda dos Postes Sagrados. Sei que vai por lá uma grande balbúrdia, porque chegaste hoje, e sei que não vais descansar enquanto não cheirares cada recanto e correres atrás das outras almas caninas, habituadas ao remanso de uma eternidade pachorrenta. Contigo não pode ser assim, e os outros que se habituem.
Sabes que não sou dado a essas coisas de céu ou inferno, antes pelo contrário. Até pode haver alguma coisa parecida, não sei se as duas, mas ignoro para qual irei quando chegar a minha hora. Sabes que nós, bichos de duas patas no chão, não descansamos enquanto não complicarmos as coisas, e há entre nós uns fulanos que se julgam intermediários entre cá e lá. Desses é que eu não gosto muito, ou, melhor, não gosto das organizações de que eles fazem parte, sejam elas quais forem. Com os cães, como bem sabes, não há nada disso. Vocês têm mais que fazer do que andar a complicar: há que correr atrás de gatos, roer ossos, comer, dormir, dormir, dormir e alegrar os bichos de duas patas no chão que um dia decidiram adoptar. Sei que existe esse sítio, para onde hoje te mudaste, porque vocês não existem para praticar o mal, porque sei que têm sentimentos, e é isso ter alma, porque sei que amam de verdade, incondicionalmente, porque têm a generosidade de o fazer em relação a animais de outra espécie, esta minha, como se fôssemos dos vossos.
Vêm-me à memória tantas imagens tuas. Desde o dia em que eras um qualquer no meio de uma ninhada de diabretes pretos até ao dia em que deixaste de ser um qualquer, porque foste levado à casa que viria a ser tua e de onde não quiseste sair. Saí eu, porque a vida de gente é feita dessas coisas, mas com o coração sempre ligado a ti e ao outro, que te adoptou ao mesmo tempo, esse irmão mais velho que partilha contigo o estatuto de cão mais lindo do mundo, apesar de tão diferentes. Loiro um, moreno outro (tu, claro), sereno um, frenético outro (tu, claro), mais rijo um, mais frágil outro (e por isso partiste). Tão pouco parecidos que até ficou para sempre a anedota do engenheiro imbecil que, querendo ser simpático para disfarçar a incompetência na venda de uma casa, saiu-se com a bela conclusão: “São de raças diferentes!...”.
Ficámos assim a saber que tu, um cão de pastor belga groenendael (mainada!...), não eras o mesmo que o teu mano, um golden retriever.
Mas vejo-te naquele dia em que cheguei e tinhas uma pata em farrapos, ensanguentada e dobrada para trás, lembro-me do susto, de como caminhaste lentamente para mim, a pedir ajuda, de como fomos ao veterinário a correr para que voltasses a andar. Eras cachorro, ainda, e desde então viveste sempre com um ferro metido lá dentro, sem que isso te impedisse de correr como um louco atrás de bolas e outros brinquedos. Lembro-me de quando eras mesmo pequeno e não conseguias pular para cima da cama, lembro-me de acordar com os teus vinte e seis quilos em cima de mim e as minhas costas transformadas em papas de aveia. Lembro-me de como roías tudo, quando eras pequenino. Puxadores de gavetas, comandos da máquina de lavar, botões do micro-ondas e do fogão... Um dia, abriste uma gaveta e destruíste uma embalagem de folha de alumínio. Na hora de aliviar a tripa, inventaste as fezes prateadas, ignoradas em todos os manuais de veterinária que há no mundo. Mas o que de ti mais fica são os carinhos, o mimo, a língua frenética a distribuir beijos, o afã de estar sempre a ver tudo o que se passava, a canseira de controlar todos os gestos e movimentos dessa gente que estava à tua guarda.
Assim ansioso, não foste capaz de esperar pelo teu tempo de ir para o paraíso dos cães. Foste cedo, apressado, parecia que tinhas receio de perder alguma da acção que por lá haverá. Ou não, estou a ser injusto contigo. Sei que sofreste. A vida ainda não te seria insuportável, mas não tardaria que o fosse. Tiveste muita sorte, porque a patroa deu-te tudo e esteve sempre contigo. Eu não, ou eu pouco, mas já te expliquei que a vida de gente é feita dessas coisas. Sei que me perdoas.
9 Comments:
Gostei do texto e lamento muito. Infelizmente, a vida é mesmo feita dessas coisas (tal como de tantas outras). Abraço.
03:45
Lindo.
Um abraço grande. Sei o quão difícil é perder alguém que tem a generosidade de nos amar incondicionalmente.
15:39
:-(
17:56
Também lamento muito essa perda. Ainda por cima uma perda tão precoce.
Tenho também um amigo da idade dele (e outro mais novinho, que é o filho) e sinto que um dia também terei que me despedir, foi também por isso que me se me apertou o coração mal entrei na Fonte.
Um abraço,
MBP
23:01
Muito obrigado a todos. O Jorge é meu irmão, não precisa dessas coisas. Ao Cafajeste, já agradeci no blogue dele. Quanto às flores e abelhas, creio tê-las identificado ;), restando-me assinalar o regresso do Mário às lides no "Avenida dos Aliados", ao cabo de três meses de silêncio. Espero que seja para durar.
O mesmo aplica-se, claro, a outros que, eventualmente, aqui digam alguma coisa.
15:22
Só mesmo ele me faria vir aqui, à procura de memórias que estavam escondidas, perdidas, secas, atrofiadas, mortas.
Lésse
15:54
Ler o que aqui está escrito foi, para mim, um privilégio. Obrigada pelas belíssimas palavras e sentimentos que connosco partilhou.
Um grande abraço meu e outro enorme dos pequenotes netescritores,
Emília.
22:25
Gostava de ter conseguido escrever este texto há meses atrás... O aperto que sinto na garganta apenas confirma que as saudades ficam para sempre.
17:48
Curioso... perdi há menos de uma semana o meu mano canino e também no meu blogue lhe fiz as honras. Dei com o teu blogue por acaso e chamou-me a atenção a foto do teu amigo. Além disso, temos o apelido (apesar de assinar sob pseudónimo - Davi Reis) e a profissão em comum... Só para dizer (como sussurra a Manuela Azevedo) que o teu texto é muito bonito e me tocou. Ainda estou a quente da perda...
Um abraço fraterno
23:30
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