0 comments | domingo, novembro 27, 2005

Direitos reservados

Há tempos, em conversa com um reputado cronista deste reino, entre outras facetas que contribuem para que reputado seja, velho camarada destas coisas, que não os blogues, aproveitei para maldizer as crónicas sobre a falta de assunto, tentação que, por vezes, abraça sem esboço de resistência (a crónica, diz o cronista à crónica, responde a crónica ao cronista...). Por respeito e admiração, só lhe disse que a coisa não tinha jeito nenhum, mas acho mesmo que o subterfúgio para encher papel é uma xaropada.

Um dia, ouvi Saramago dizer que o drama da folha em branco é um disparate (lembro-me lá com que palavras...), negar por completo a existência da inspiração e apontar o trabalho como verdadeira fonte da arte em escrita. Tem toda a razão e não tem razão nenhuma. Mente quem diz que escreve ao correr da pena, mente quem diz que a escrita é apenas corolário de um esforço. Ou seja, não há anjos que nos povoem a imaginação, ditando o brilhantismo que uma soma de palavras poderá encerrar, tal como ninguém escreve apenas por saber todo o vocabulário, por recitar as regras gramaticais ou porque investiu em papel e tinta, forma tradicional destes computadores com processador de texto.

Ora, se José Saramago é um escritor brilhante, por mais que o neguem os que lidam mal com o triunfo alheio, não o é apenas por trabalhar a palavra. Nem o dito cronista, que é poeta, novelista, enfim, que é artista, deve encostar-se à rotina de muitos anos para resolver o problema da falta de assunto, ou seja, mandando às malvas essa maçada do trabalho. Entorna-se o caldo, porém, quando escrever significa honrar compromissos e a dormência das ideias não ajuda. Às vezes, é a necessidade de tapar o buraco que nos põe em piloto automático, escolhendo palavras, agrupando-as, inventando-lhes aparente coerência.

Ao erguermos uma precária parede de frases, convencidos de que alguém nelas descobrirá o sentido que as firma, apenas rezamos para que o vento abrande, a terra não trema e ninguém as faça desabar com a sacudidela de um olhar crítico. Na verdade, o que queremos é que ninguém repare muito nelas, que as deixe ganhar repouso sob a poeira que as cobrirá. Até nos blogues, estranhas crias que nos pedem sustento, pode acontecer que apenas lhes possamos dar uma malga de caldo, esgotado que esteja o orçamento mental para escrever bifes do lombo. Assim fiz agora mesmo. Podia ter estado quieto, é certo, mas as mãos mexem-se sozinhas, mesmo se pouco inspiradas.