Avenida dos Aliados, Porto
Não há sábado sem sol, domingo sem missa nem segunda sem preguiça. Sobre a missa não me pronuncio, sobre a preguiça também não, seja por não ir, seja por o meu calendário não ser fixo, isto é, tanto posso trabalhar à segunda-feira como estar de folga, assim será depois de amanhã. Apanhei boleia na nesga de sol que cortou este sábado chuvoso, meti-me no metro, a causa primeira da discórdia, e fui até à Baixa para dar uma espreitadela à concentração de protesto contra as obras em curso no eixo Praça do General Humberto Delgado-Avenida dos Aliados-Praça da Liberdade.
Evidentemente, não venho para aqui fazer apreciação de manifestações, concentrações ou seja lá o que forem, apenas me compete saudá-las. Enquanto deambulava por lá, encontrei um grande amigo, que não via há uns tempos, e com ele troquei algumas impressões. Contou-me que antes, sempre que mostrava a Avenida dos Aliados a estrangeiros a quem servisse de cicerone, eles ficavam maravilhados, motivo “suficiente” para abraçar a causa. “Fazias isso ao sábado ou ao domingo, imagino...”, comentei, já a ouvir a resposta afirmativa.
Claro que a conversa foi mais do que isto, meteu “vacas sagradas”, e eu admiti que haja por aí quem se julgue intocável, falou-se na degradação da Baixa, e disse-me ele que fica deprimido quando por ali anda, mais quando olha para cima do que quando o faz para o chão. Aí aplaudi, pois já estávamos a falar da desertificação, da degradação do edificado, das casas devolutas em que ninguém pega...
O meu amigo foi à vida dele, por ali fiquei eu alguns minutos, caladinho a beberricar o ambiente, até que fui avenida acima para apanhar de novo o meu meio de transporte, fatalmente a pensar na dita requalificação daquele espaço. E a verdade é que, por mais que pense, continuo à margem desta causa, embora admita que os contestatários têm razão, em diversos aspectos.
E volto a bater nas mesmas teclas. Os amigos estrangeiros do meu amigo ficavam maravilhados com a Avenida dos Aliados porque a viam despida da confusão, tal como agora está a ficar despida dos canteiros. E se falo em canteiros, esclareça-se desde já que gosto de flores, de cor, da frescura dos relvados, da possibilidade de me deitar neles (ali, só em noite de S. João recuada, já bem bebido...); e que me parece muito bem que tudo aquilo seja repensado. Quanto à falta de transparência no processo e o desrespeito por movimentos de cidadãos, nem precisarei de dizer muito, sou incondicionalmente contra todos os exercícios de autoritarismo e sobranceria do presidente da Câmara e respectivos muchachos.
Então, o que é que me incomoda? Que queiram pôr tudo como estava. Porquê? Porque acho que estava mal, naturalmente, e porque considero insensato o argumento de que alterar o traçado das ruas e a largura dos passeios mexe com a história da cidade. Isso, para mim, é absolutamente desprovido de sentido.
Incomoda-me que queiram pôr tudo como estava, porque estava mal, e volto a dizer que os cidadãos e o espaço conviviam em plena indiferença, porque era ponto de passar e não de ficar. E continuará a ser, se não fizerem mais. Muito mais.
Bem sei, já aqui disse coisas parecidas com estas. Importa ir um pouco além. Em primeiro lugar, a avenida nunca poderá ser como era, pois o alargamento dos passeios laterais é um facto mais do que consumado, devido às saídas da estação do metro. Ora, o metro é a coisa mais importante que se fez nesta terra, nas últimas dezenas de anos, e a lógica de funcionamento dele implica as estações existentes (estamos a falar de um “tramway” com troços subterrâneos, não de um metropolitano convencional). E o alargamento dos passeios laterais parece-me essencial à revitalização da avenida, desde logo porque continuará a haver trânsito, que demove os cidadãos de usufruirem da placa central. Mas porque, caminhando rumo à requalificação do comércio, poderão esses espaços tornar-se aprazíveis, vivos, vividos, partilhados (falo em esplanadas, até agora impossíveis, falo no que vos apetecer). Admito que nada venha a ser feito nesse sentido, mas parece-me o único caminho, se quisermos que a expressão “sala de visitas da cidade” deixe de ser tão despropositada.
Depois, há a questão do granito. Desculpar-me-ão os supostos defensores da calçada portuguesa, mas essa expressão não implica a obrigatoriedade de usar calcário e basalto. Com pequenos cubos de granito, que o há de várias tonalidades, podem fazer-se calçadas lindíssimas. É o material típico da região e, num espaço inclinado como aquele, não oferece o perigo de escorregadela permanente dos calhauzinhos brancos, numa cidade onde a chuva está sempre a tentar compensar a inoperância dos serviços de limpeza. Ou seja, não vejo problema no granito propriamente dito, posso apenas dizer que não gosto da tonalidade única, não gosto dos cubos grandotes e não gosto daquele padrão monótono em leque por ali abaixo. Mas também admito que possa estar enganado (quem sou eu?) e que a coisa, depois de pronta, até funcione. Já o granito nas faixas de rodagem é, para mim, uma imbecilidade, porque provocará considerável aumento do ruído e será uma permanente fonte de insegurança, para os automobilistas e, consequentemente, para os peões.
Sintetizando: concordo que se lute pela transparência e contra a autocracia de que há dias falava o Manuel António Pina, mas rejeito a ideia de querer pôr tudo como estava antes. A estação do metro está feita, é uma inegável mais-valia, embora ainda haja muita gente que o não entenda, e deve transformar-se numa oportunidade. Não no sentido em que Rui Rio usou a mesma expressão, unicamente para defender o que ele mesmo havia decidido, mas com o intuito de devolver realmente a Baixa aos cidadãos, que mais não é do que devolver os cidadãos à Baixa.
4 Comments:
Viva,
Só tenho pena, no bom sentido claro, que não tenha sido eu a escrever este post. Porque, em primeiro lugar, está bem escrito e fundamentado e porque, em segundo lugar, subscrevo cada uma das ideias defendidas.
Quero sublinhar (não acrescentar) que, de facto, o metro foi a única revolução - no bom sentido - que a cidade sofreu nas últimas décadas e que não devemos ter uma visão conservadora das cidades. Só é pena é que se assista a dois extremos, cisto é, por um lado os que não querem que nada mude e por outro aos que mudam tudo sem a devida abertura à discussão pública. E pelo meio parece-me que há muitas ilegalidades que prometem travar as obras. A ver vamos.
Só "rezo" para que o resultado final desta "sopa" à portuguesa seja feliz tanto ao nível visual e funcional da obra como na resolução dos seus problemas técnicos.
Abraço e parabéns pelo blogue,
19:50
Caro POS,
defendo a Avenida dos Aliados, desde que tomei conhecimento do movimento.
Defendo-a não para que tudo se mantenha imutável, mas para que se possa discutir a sua alteração.
Se a Baixa tem de ser devolvida aos peões, não se compreende que se aumentem os passeios e se diminua o miolo, mantendo três faixas de trânsito de cada lado.
Se se pretende que o centro da Avenida seja um espaço contínuo, então não se mantenham as travessias futuras que serão do mesmo número das actuais.
Se não se querem o preto e branco nos passeios podem pò-lo no centro pedonal com revestimento que o torne menos escorregadio.
Se não gostam de árvores e arbistos... isso já é outra coisa, pois não consigo ver beleza nenhuma no minimalismo arranjado para a Pr. D. Joãp I, para o largo em frente ao Centro de Fotografia, ou na proposta feita pelos srs. arquitectos famosos.
Duvido que aquela Avenida possa ter mais gente do que até agora teve se nada for feito entretanto, mas o tempo o dirá, só espero estar por cá para o recordar.
17:34
Ricardo,
Foi mesmo isso que eu quis dizer. Obrigado.
Caro Teófilo,
Que o projecto dos senhores arquitectos famosos tem árvores, lá isso tem. Falta apenas saber se é verdade que a placa que cobre a estação do metro impede que sejam plantadas. Se assim é, estamos mal. A Praça de D. João I não está tão minimalista como isso, digo eu. É, simplesmente, desaproveitada, porque as pessoas desta nossa terra conseguem, às vezes, ser mais cinzentas do que todo o granito. Quanto a devolver a Baixa aos peões, alto lá. Só quando mudarem as mentalidades, daqui a sei lá quantas gerações, é que tal será possível. Projectos como o do arquitecto Pulido Valente, que está no "A Baixa do Porto" (não sei fazer links na caixa de comentários) parecem-me irreais, pois resultariam numa enorme sucessão de nós cegos. Aliás, pelo que já aqui expliquei, a dinâmica programada para os transportes públicos implica que os autocarros continuem a parar na Avenida dos Aliados. Quanto à circunstância de a Baixa ter mais gente, também já por cá escrevi qualquer coisa: há que povoá-la, dotá-la de comércio de qualidade, estruturas de lazer, actividades de rua, etc. etc. etc.
Obrigado pela sua contribuição.
17:55
Não à imposição da contemporaneidade em locais emblemáticos e característicos da cidade. Não a um conceito conservador de "modernização" das cidades.
Leiam a Carta de Atenas!
Leiam Avenida dos Aliados- memória deum lugar
Releiam Silêncio: a obra vai começar!
(Caro POS não perco a oportunidade, mais uma vez ;-)
12:43
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