| domingo, maio 02, 2004


Estamos na Praça da Liberdade, olhando para a mais celebrada obra de Nasoni. A rua que nos enquadra a visão chama-se dos Clérigos, tal como a igreja e a torre, escusado seria dizê-lo. Estamos fora de muros. Se a Muralha Fernandina, que começou a ser erguida no reinado de D. Afonso IV, tivesse resistido à visão aniquiladora dos urbanistas de setecentos e oitocentos, vê-la-ímos correr à nossa esquerda por ali acima, seguindo, mais coisa, menos coisa, o enfiamento dos edifícios. Estamos no sítio onde houve a Praça Nova, mas só nos interessa aquilo para onde olhamos e que a fotografia não mostra. A muralha, nenhuma igreja e nenhuma torre. Um terreno baldio onde, eventualmente, crescem malvas, plantas que, quando floridas, dão ao conjunto uma tonalidade purpúrea de Semana Santa. Pouco importa a botânica, se bem que, cromaticamente, tal manto fosse consentâneo com a utilização do espaço. Chamava-se àquilo o Campo das Malvas, e é naquele sítio que temos de pensar quando às malvas mandamos alguma coisa, pois aí nasceu a expressão. Nesse terreno, algures por ali, onde a rua sobe e onde a igreja foi erguida, habitava a morte. Era por aí que se enterravam os justiçados, saídos da forca que funcionava adiante. Alheios a isso, o torvelinho do trânsito, o formigueiro de gente anónima que sobe e desce, o comércio que resiste, a torre que domina. A imagem é emblemática, reproduz-se num sem-fim de postais ilustrados, fica gravada na memória dos que visitam a cidade ou dos que nela vivem, olhando-a com indiferença. Os que a justiça de antanho matou, regressados ao pó, não chegam para impedir o progresso. O progresso pisa-os sem saber que lá estiveram.

Nota: a ideia é ilustrar o blogue apenas com fotos minhas, boas ou más; como não tenho a perspectiva que quero da Rua dos Clérigos (tenho de lá ir), recorro a uma solução de circunstância, ou seja, a aguarela será substituída.