5 comments | segunda-feira, junho 12, 2006

Algures pelos idos de setenta, creio que já depois de os cravos terem espingardado, havia, no Leixões, um jogador chamado Fernando. Esta recordação poderá parecer bizarra, estranho que sou ao clube de Matosinhos e estranho que me ele é, mas tem explicação. Esse Fernando era o rei dos repetidos, em cromos que comprávamos/surripiávamos, envolvendo manhosos rebuçados que íamos buscar a uma manhosa mercearia, algures em Paranhos. Talvez exagere, mas, em cada dez guloseimas que iam para o lixo - tão enjoativas se haviam tornado -, quatro ou cinco traziam o boneco mal impresso desse Fernando.

Suponho que já não há rebuçados com cromos. Lembrei-me disto porque, nos últimos tempos, tem alastrado uma epidemia, envolvendo miúdos e jovens daquele tempo, que compram, trocam, cobiçam figuras autocolantes dos jogadores que estão no Mundial da Alemanha. Fazem listas, há fóruns na Net onde negoceiam as trocas, saem dos quiosques carregados de carteirinhas, debatem o assunto na blogosfera. O Fernando e os outros eram trocados na rua ou no recreio da escola, os mais difíceis, carimbados ou não, tinham cotações implícitas e todos podiam ser conquistados ao parceiro, nesse acto de grande tensão e perícia que era jogar o “virinha”.

Hoje, há colegas meus que não sabem o que era o “virinha”. E já dei comigo a sacar de cartões de visita para explicar.

Essa febre que por aí anda poderia justificar dissertações sobre a natureza dos homens e o que os distingue das mulheres, talvez essa circunstância de a palavra “maturidade” ser um substantivo feminino. Mas só me ocorre dizer que o Fernando e coevos não eram autocolantes, normalizados. Não eram bem impressos nem negociáveis na Internet que não existia.

Os negócios eram acalorados, impulsivos, de cara à vista. Mas mais inocentes, limpos, frontais. Hoje, a vida é negociada como os cromos. À socapa. Sem olhos nos olhos, pondo listas dos que faltam num fórum, lançando engodos, ignorando os que não interessam e montando o cerco aos que interessam.

A perversidade humana é endémica, não nasceu agora. Mas vive em acelerado aperfeiçoamento. Compram-se fidelidades, inspiram-se medos, inventam-se solidariedades falsas e amizades perecíveis. As pessoas comunicam por números, como os que colocam nesses fóruns sobre cromos, e cada vez menos por afectos, como os que resultavam em bulhas sem ressentimento quando o “virinha” corria mal.

Há quem apenas admita o outro, nestes dias, como uma metamorfose do eu, ou seja, vivendo hoje a conquista dos degraus de satisfação pessoal que, ao fim e ao cabo, levam ao isolamento de amanhã. Porque o verdadeiro outro é morto ou como morto vale. Pensando curto, esquece-se que o sucesso individual não faz sentido sem o respeito do colectivo.

Pensando curto, trilha-se o caminho fácil, feito de cromos autocolantes. Não se joga ao “virinha”, não se partilha em glória a vitória de conquistar o cromo carimbado. Completar a caderneta é um triunfo solitário, não é uma festa. E as conquistas subterrâneas, isentas de alegria em comum, pouco valem. Compra-se a caderneta completa e guarda-se na gaveta das preciosidades, mas a verdade é que não se fez a colecção.

5 Comments:

Blogger Teófilo M. said...

Caro POS,

pleno de actualidade e na mouche.

Abraço

10:45

 
Blogger David Afonso said...

Obrigado por este texto. Grandes memórias me traz ele. E tem razão: isto começou a descambar com a invasão dos cromos auto-colantes. O improviso e invenção de receitas de colas para segurar aqueles estupores à caderneta era meio divertimento. Quanto ao «vira» sempre fui presa fácil: era o mais pequeno do grupo...

02:00

 
Blogger Mário Almeida said...

Parabéns ao David por esta recomendação. É de facto um texto excelente.

Se me permites, pareceu-me notar alguma incompreensão ou inadaptação dos tempos de hoje. Isto não é uma crítica, eu próprio sofro disso. Eu não adepto, por exemplo, do messanger ou outros do género, onde se passa muito do que descreves no texto : “As pessoas comunicam por números, como os que colocam nesses fóruns sobre cromos, e cada vez menos por afectos, como os que resultavam em bulhas sem ressentimento quando o “virinha” corria mal.”

Sei, no entanto, que uma grande parte da minha geração (tenho 35 anos e pela utilização palavra “bulha” julgo que não andarás longe) o é e por isso é que eu sei que o "defeito" é meu.

Já agora, o termo que utilizávamos em Moncorvo (Trás os Montes), onde cresci, não era “virinha”, era “pim pim”. Conheces a expressão ?

Um abraço

09:43

 
Anonymous Anónimo said...

eu virava era gajas ao contrario

18:56

 
Blogger POS said...

Com algum atraso:

Seja bem re-vindo, Teófilo, e obrigado pela atenção!

Caro David Afonso,

Esclareço que também nunca fui um grande especialista.

Caro Mário Almeida,

Agradeço a visita. Tenho uns pozitos a mais, coisa pouca, mas nunca associei a palavra "bulha" a qualquer época específica. É, simplesmente, uma palavra que me pareceu adequada ao que pretendia dizer. Já agora, e apesar de os textos não deverem ter explicações, esclareço que uso o messenger e essas coisas todas, conquanto me sejam úteis. Não era bem por aí... Não conhecia o "pim pim", mas passei a conhecer. Obrigado.

Prezado anónimo,

Vire o que lhe apetecer, desde que elas deixem, o que me parece pouco provável.

16:33

 

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