A partir do momento em que se viu um porco a andar de bicicleta, como será o caso de todos os que agora tenham chegado à Fonte das Virtudes, é legítimo acreditar-se que poucas são as coisas, neste nosso mundo, passíveis de causar estupefacção. Mas todos temos consciência de que isso não é verdade. Sempre haverá alguém que detenha essa inefável capacidade de fazer, dizer ou escrever impunes vergastadas no bem-estar intelectual do próximo.
Tinha concluído, em assembleia geral com os apliques circulares pregados, em vertical alinhamento, ao longo da face frontal da camisa que então vestia, não escrever sobre o assunto Carrilho. Porque não quero que me acusem de corporativismo, porque não li o livro e tenho mais que ler, porque vejo o assunto como um desses folclores que agitam a superfície das águas com espalhafato, sem causar qualquer abanão nas profundezas, no caso, da política e do jornalismo. Uma perda de tempo, portanto.
Ontem, porém, mudei de ideias, os meus botões que me perdoem violar a decisão do colectivo. É que, numa livraria, passei pela polémica obra e dei por mim a folheá-la. Demorei alguns 30 segundos até fechar o livro, devolvê-lo ao escaparate e reforçar a ideia de que não me apetece voltar a olhar para tais páginas. Passo a explicar porquê. No capítulo dedicado ao tal caso do não aperto de mão, Manuel Maria Carrilho, num assomo de ingenuidade tão pouco consentâneo com a imagem de grande intelectual que alguns dele traçam, condena com basta adjectivação a atitude de Carmona Rodrigues, ao lembrar a polémica dos sanitários no Ministério da Cultura, e afirma com todas as letras ter ficado surpreendido, pois tal ataque, alegadamente baixo, era algo que nunca esperara. Logo a seguir, descreve que pôs tudo em pratos limpos, sacando dos papéis de que se havia munido a decisão judicial que o ilibava. Ora bem, tê-lo feito no debate foi uma atitude normal, homem prevenido vale por dois. Agora, escrever (e escrever sempre será um acto mais pensado do que as bojardas proferidas na refrega), do alto de um improvável Olimpo da moral, que tinha ali à mão os documentos para refutar uma acusação que nunca havia esperado, que em circunstância alguma julgou ser possível, que ultrapassou todas as expectativas... escrever isso, assumindo-se nas entrelinhas como o impoluto portador do divino verbo, em vez de notar apenas que tomou as necessárias precauções, é fazer de todos os leitores uma grande cambada de parvos.
Um pormenor desses é suficiente para que eu não queira ler "Sob o signo da verdade" (ah, quanto pedantismo cabe num título!...). Porém, já que estou com as mãos na massa, posso deixar algumas notas sobre o debate de segunda-feira à noite, que vi, pois a legitimidade para tal não tem qualquer relação directa com a leitura do livro. Fá-lo-ei da maneira fácil, dedicando um parágrafo a cada um dos principais intervenientes.
Manuel Maria Carrilho, devo confessá-lo, causa-me alguma pele de galinha. Escapa à minha inteligência que alguém, nos dias que correm, assuma o rótulo de filósofo. Até poderá sê-lo (quem não é?), mas assumi-lo, até porque não tenho informação de que tal mester conste do código das actividades económicas, não passa de pose, uma pose como a que Carrilho fez para a foto que pôs na capa dessas páginas que julga reveladoras e - pasme-se - corajosas. Mas isso, terei de reconhecer, é defeito meu. Não deverá interferir no meu juizo essa circunstância de um professor de Filosofia, por mais meritória e original que possa ser a obra que vai publicando (sei lá se é), ostentar o distanciador título de filósofo, algo que, porventura, lhe deveria ser dado pela posteridade, a única capaz de aferir com serenidade intelectual do dito mérito e da dita originalidade. Seja como for, não tenho muito a dizer sobre o Carrilho que foi ao debate. Aquele Carrilho que disparava ódio pelos olhos, aquele Carrilho que estuda a junção das mãos enquanto reflecte para dizer nada, aquele Carrilho que voltou a insistir nas acusações que se mostra incapaz de demonstrar. Não me compete dizer se ele tem ou não razão no que diz, justamente porque não sou capaz de demonstrá-lo. Porém, devo admitir que, nas relações entre políticos e jornalistas, com as agências de comunicação pelo meio etc. e tal, é perfeitamente possível que surjam casos de corrupção. Digo-o no abstracto, naturalmente, porque deles não tenho conhecimento palpável, isto é, de que possa fazer prova. O problema é que também Carrilho o diz no abstracto, tentando dar a imagem corajosa de que está a concretizar. Está visto, por um lado, que não concretiza nada. Mas, também, que falta ali qualquer coisa. É que, se sabe que há corrupção, sabe que há corrompidos e corruptores. Ora, contra os corruptores, isto é, os políticos que, supostamente, possam comprar opinião e coisas que tal, não diz uma palavra. Ou seja, age, nesse particular, como quando justifica ter cumprimentado sorridentemente, dias depois, o adversário que tão gravemente o havia ofendido, explicando ser essa a diferença entre público e privado (só alguém com cérebro de paramécia poderá acreditar que a filmagem do não aperto de mão foi ilegítima). Em suma, o antigo ministro da Cultura deixa, por mais que não queira, a imagem de alguém que não digeriu a derrota. Não sei se sabe de coisas ou se deixa de saber de coisas. Não o demonstra, não consegue ser credível, parece toldado pelo rancor e aparenta, sem disfarce, desprezar os antagonistas. E mais não será preciso dizer.
Emídio Rangel foi patético. Também ele, introdutor em Portugal do telelixo, do jornalismo transformado em espectáculo e cultor primeiro da encarniçada concorrência que tem transformado a televisão em objecto deformador das mentalidades, também ele, dizia, quis empunhar a bandeira da moralidade. Pode fazê-lo, claro, mas ninguém acredita. Não disse coisa com coisa quando pretendia estar a elevar o debate. Dizia que há bom jornalismo e mau jornalismo... Claro! É como o senhor de La Palice, que estaria vivo se não tivesse morrido ("hélas, s'il n'était pas mort, il ferait encore envie"). O problema é que Rangel não disse mais nada. De resto, limitou-se a perder a guerra de comadres com Ricardo Costa.
Ricardo Costa foi ao debate para se defender das acusações de Carrilho. Há quem diga para aí que foi muito bem preparado, direi eu que foi razoavelmente preparado. Porque se limitou à argumentação inconsequente, nunca sabendo mergulhar na discussão de fundo. Deitou por terra o que o amigo Emídio terá querido dizer, mas isso é absolutamente irrelevante. O mundo continua a girar sejam quais forem as historietas vividas pelos senhores das televisões. Exaltou-se também com Carrilho. Não devia, devia permitir que Carrilho fosse o único exaltado. E não soube justificar devidamente a questão do não aperto de mão, quando teria sido tão fácil: as atitudes de candidatos em campanha são sempre escrutináveis, pelo que nem se coloca a questão do público/privado, pois um estúdio de televisão em caso algum é espaço de intimidade; se os candidatos não sabem disso, pagam; por ter tomado consciência disso, Carrilho deu o tal "bacalhau" sorridente, dias depois, que, nessas circunstâncias, não passou de um tiro no pé.
José Pacheco Pereira é, pelos vistos, de outro campeonato. Mesmo sem fazer parte do clube de fãs, tenho de reconhecer que teve a única participação lúcida e inteligente no debate. Participação pouca, é certo, porque a lucidez nem sempre cabe nestes espaços de combate mediatizado. Desmontou as debilidades do livro de Carrilho facilmente, tentou elevar o debate sobre os media, questão a que consagra tantos dos seus escritos. Mas, como sempre, não deixou claro que também ele vive pelos media, que será ele dos que em Portugal melhor partido tiram dos media, se bem que num universo distinto dos que frequentam as páginas de revistas do coração. Diz que "quem vive pelos media morre pelos media". Ao sabê-lo, consegue estar em vantagem.
4 Comments:
só me apetece dizer do debate: "Porra Carrilho, isto já está mal, mas escusavas de trazer a trampa a tona, o resto,sendo o que dizes verdade ou meia verdade, estamos a falar do nosso pão pra boca ."
um abraço
10:06
only 1 comment para uma prosa bem tecida e tão certeira. O pessoal não perde tempo com tal ruim defunto - refiro-me ao filósofo, como está bom de ver. Abraço.
23:19
O pessoal já não tem pachorra jornalistas que acham que podem pôr em causa todas as profissões e ninguém os pode pôr em causa. Abraço
16:31
Aos (às) Anonymous, que serão duas pessoas diferentes ou, então, um divertido caso de dupla personalidade:
Em primeiro lugar, o filósofo, chamemos-lhe assim, não é defunto e até é pessoa com trabalho muito meritório na bagagem. Tem problemas graves com a vaidade, a irascibilidade e o mau perder...
Em segundo lugar, os jornalistas são muito críticos uns dos outros. Por mim falo, não tenho problemas em aceitar críticas inteligentes, venham de onde vierem. Não li o livro de Carrilho, apenas o folheei, mas pronuncio-me, em especial, sobre o desempenho que teve no debate, muito pouco inteligente, para escrever de forma eufemística. De resto, ainda bem que há jornalistas prontos a denunciar muita da podridão que há por aí, já que mais ninguém o faz. E não falo apenas de profissões. Desconfio que, no seio dos próprios partidos (quaisquer que sejam), muita coisa haveria a contar. Coisas com que muitas pessoas que andam lá dentro não concordam, mas que calam, às vezes por serem mais fiéis ao clube do que à consciência.
23:10
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