0 comments | quarta-feira, julho 21, 2004

É curioso que ainda ontem passei boa parte da manhã numa deliciosa conversa, em que vieram a propósito os problemas da condição feminina através dos tempos. Problemas perenes, mais perenes do que possamos imaginar. A parte curiosa – tristemente curiosa – é que mais tarde vi um trabalho, na televisão, a propósito da violência sobre as mulheres, com especial enfoque na situação espanhola, que ganhou grande visibilidade nos últimos anos, e alguma discussão sobre a realidade portuguesa.
 
Uma das questões que estão em cima da mesa tem a ver com o quadro legal aplicável, isto é, com a dúvida entre penalizar especificamente a violência sobre as mulheres ou enquadrá-la no quadro genérico da violência doméstica. Há quem considere que o tratamento isolado, em termos de legislação, dos casos em que as vítimas são mulheres é uma espécie de retrocesso, uma outra forma de discriminação pouco consentânea com os progressos obtidos, nos últimos tempos, em matéria de igualdade. Se a discussão for meramente académica, até lhes poderei dar razão, mas, de um ponto de vista mais pragmático, creio que cometem um erro.
 
Por mais que disso queiramos fugir, a sociedade continua eminentemente patriarcal. Se alguns de nós (homens e mulheres) entendem como irracional e profundamente injusta a desigualdade reinante, essa está longe de ser a mentalidade que domina. Há, ainda, muitas mulheres que entendem como normal (legítimo, até) o ascendente masculino no casamento, admitindo que o homem tenha o direito de retaliar fisicamente (há outras violências, claro, mas do que aqui se fala agora é da violência física). E estaremos a fugir à realidade se não tivermos em conta que todas as pessoas -- mesmo as que, por uso da razão, lutam contra a velha ordem – têm, de algum modo mais ou menos recôndito, interiorizada como normal a preponderância do homem.
 
Estamos a falar de uma limitação que é quase congénita, que cada um tem de combater, que cada um tem que procurar transmitir aos que educa ou àqueles com quem convive (estão a reparar na preponderância do género masculino na língua?). Promover a igualdade é uma prioridade, mas a verdadeira meta, que é incutir essa noção de igualdade nas mentalidades, é muito mais difícil de atingir do que possa parecer. Pressupõe o esforço de muitas (soubesse eu quantas) gerações, pois não se desfaz em poucas décadas uma evolução colectiva de milénios. Por isso é que, atendendo ao drama que é a violência, em tempo real, é necessário agir sobre o problema não só com a intenção de o eliminar, de vez, mas também de o evitar no imediato. Nesse sentido, parece-me que a tal discriminação, subjacente às leis específicas contra a violência sobre as mulheres, é um mal menor. Não podem os legisladores e pessoas que se interessam por isto pensar, porém, que vão assistir em vida à implementação plena da igualdade. A tarefa cabe a todos nós, mas não se coaduna com ciclos políticos. Queremos traçar rumos evolutivos e, portanto, teremos de ter consciência de que a evolução se faz ao sabor de outros ritmos. Não chega o tempo de uma vida, é precisa a dedicação de muitas vidas.