O morro da Pena Ventosa, onde nasceu a cidade do Porto, é dominado, como saberão, pela Sé. O domínio reveste-se de uma óbvia dimensão simbólica, determinada pelo poder eclesiástico na cidade, e não importa agora falar de todas as intervenções arquitectónicas, tanto de pôr como de tirar, a que a Catedral tem sido sujeita ao longo dos séculos. Ressalvo apenas que esse domínio – falo da sensação visual – foi exacerbado pela criação, na década de 1940, do terreiro da Sé, à custa do casario que antes envolvia o templo, intervenção discutível mas também compreensível, na medida em que foi feita à luz das tendências da época e não de uma qualquer decisão espúria. É um pouco à sombra da Sé que está o monumento que agora nos interessa. Trata-se da única grande igreja que foi erguida entre a sede do poder episcopal e o Rio da Vila, facto que, por si, é amplamente significativo. Hoje em dia, essa igreja e os edifícios adjacentes formam o Seminário Maior do Porto, um centro de formação profissional de presbíteros, e é mais conhecida por igreja dos Grilos, à frente explicarei porquê. Prefiro designar essa estrutura por Colégio de S. Lourenço, testemunho da passagem da Companhia de Jesus pela cidade e, em paralelo, símbolo menos evidente da forte personalidade das gentes do Porto.
Existe, portanto, uma invulgar proximidade física entre os símbolos de poder do bispo e da ordem fundada por Inácio de Loiola, introduzida em Portugal no reinado de D. João III. Trata-se de uma proximidade que não traduz qualquer desafio, como sucede com o mosteiro beneditino da Vitória, mas um consentimento. Porém, tal consentimento – do bispo para com os jesuítas – não é revelador, por si, da realidade histórica, pois esconde a forte resistência que a cidade ofereceu à instalação dos inacianos dentro de muros. Com efeito, foi com muita dificuldade que a Companhia de Jesus se instalou no Porto, o que era contraditório com o que se passava no resto do Portugal quinhentista, com esta ordem religiosa a assumir rapidamente uma enorme predominância, tanto como senhores da educação como nos bastidores do poder régio.
Contam-se histórias acerca dessa resistência dos do Porto à entrada dos jesuítas, algumas de certo modo inverosímeis. Por exemplo, fala-se que, sendo esta uma cidade de mercadores e de homens embarcados e ausentes, a presença dos estudantes, já então tidos como gente desbragada, seria um perigo para as donzelas e para as esposas carenciadas. Ora, o que carece de fundamento é essa teoria. Parece mais viável que os poderosos do Porto, gente que vivia do trato, vissem com maus olhos a instalação de uma aula na cidade pela circunstância de a instrução fazer perigar a continuidade dos negócios. Daí que torcessem o nariz à possibilidade de o Porto se transformar num centro intelectual e aos propósitos dos jesuítas (conhecidos por “franchinotes”), resistindo, por bastante tempo, à instalação do colégio.
Decisiva para quebrar esse impasse foi a deslocação ao Porto, por volta de 1560, do jesuíta Francisco de Borja, um grande de Espanha, que, embora viajasse incógnito e dissimulado, foi detectado e convidado pelo então bispo do Porto, D. Rodrigo da Cunha, para se alojar no Paço. Os sermões deste Borja, mais tarde canonizado, eram de tal forma cativantes que um influente cidadão do Porto, Henrique Nunes de Gouveia, acabou por facilitar a instalação de alguns jesuítas na cidade, cedendo-lhes uma casa na zona da Ribeira (Rua das Almas), onde funcionou o primeiro colégio, consagrado, justamente, no dia de S. Lourenço. O grande impulsionador (ler financiador) do colégio novo, aquele de que aqui falamos, foi D. Frei Luís Álvares de Távora, balio de Leça, que em 1614 ofereceu trinta mil cruzados. Tal valeu-lhe o direito a sepultura na capela-mor da igreja que viria a ser construída. Erguer o monumento que aqui mostro demorou décadas, mas foi o primeiro passo para um enorme crescimento da influência dos jesuítas na cidade, particularmente intenso durante a dominação filipina.
Há uma particularidade, na fachada desta igreja, que a muitos poderá passar despercebida. É, creio, o único monumento português em cuja fachada persiste, intacta, a pedra de armas dos Távoras, afastada da face da terra e da memória pelo marquês de Pombal, no âmbito do triste processo que teve sangrento desfecho em Janeiro de 1759. No mesmo ano, precisamente, em que a Companhia de Jesus foi expulsa do país. E é depois disso que aparece o nome por que a igreja é, actualmente, reconhecida. Estando as instalações devolutas, foram lá instalados monges agostinhos descalços, que antes viviam numa Quinta dos Grilos, perto de Lisboa.
Esses monges são pouco relevantes, e a circunstância de hoje se falar mais em igreja dos Grilos não deve, penso, escamotear o que de importante tem o Colégio de S. Lourenço. Não tanto pelo que os jesuítas fizeram pela cidade, que também importa, mas pela circunstância de nesses idos de quinhentos, como em todas as épocas e momentos, os do Porto não terem hesitado em resistir a uma influência externa que julgavam fazer perigar o modo de vida que haviam construído ao longo de séculos. Isto deve ser endémico, mas é verdade que nunca gostámos que nos comessem as papas na cabeça.
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