1 comments | quarta-feira, julho 14, 2004

Ser português implica uma vocação marítima? A questão poderia permitir que discorresse, numa espécie de prolixidade oca, partindo do zero para chegar ao vazio, isto é, sem perceber o que é isso de ser português ou que diabo é a vocação marítima. Portanto, há que simplificar. Presumo que não tenho de provar aqui a minha nacionalidade, ao que avançarei já para a minha vocação marítima. Descansem, é questão muito simples, adequada ao período estival e a algum alívio que me permitiu, ontem, cumprir a dita vocação. Poderia, eventualmente, abster-me de falar do assunto, por correr o risco de parecer um bicho raro, mas, afinal, já sei que não sou tão raro como isso: entre a praia propriamente dita e uma boa esplanada frente ao mar, tragam-me a esplanada.

É em olhar o mar, pois, que mora essa vocação marítima. No gesto de vaguear com a imaginação pelos mistérios que o horizonte encerra, no processo de auto-hipnose embalado pelo murmulho das ondas, pincelado pela silhueta dos navios, estimulado pelo calor, por forçada que soe a noção de estímulo quando impressa no gostoso torpor da inactividade. Vem-me de há muito este hábito pouco invulgar. Se estou com a neura, ala para as bordas do oceano à cata do infinito com os olhos. Mas ontem nem sequer estava com a neura. E, admito, também gosto de saborear as esplanadas costeiras em estilo mais mundano, como seja deitando abaixo uma travessa de amêijoas à Bulhão Pato e emborcando umas cervejolas. Só que, por cá, não temos muito disso, das amêijoas falo, há coisas em que o Sul nos bate aos pontos. E com isto me estou a perder. Ora, o que eu queria dizer é que, ontem à tarde, tive vagar e disposição para algo que não fazia há muito. Olhar o mar através de um copo, manter fechado o livro que levava comigo, espraiar-me mentalmente num mundo sem barreiras. Chegaria, ao cabo de uma hora, para regressar retemperado à base. Mas não chegou.

Enfiado no trânsito, dei por mim a virar para o Passeio das Virtudes (sim, sim, acima da fonte), a descer a Rua de Belomonte, a virar para a Bolsa e à esquerda na Rua do Infante D. Henrique, a enfiar pelo túnel e a atravessar o tabuleiro inferior da Ponte Luiz I rumo ao outro lado da cidade (já sabem que, para mim, a divisão administrativa, tal como está, não tem razão de ser, andamos ainda a perder tempo com as manigâncias do tio Afonso III), justamente para me espraiar noutra esplanada. Cumprida a vocação marítima, fui empurrado pela vocação fluvial. Uma vez mais levei o livro, uma vez mais o livro não se deixou abrir. Bebi Porto tónico pela primeira vez na vida (aconselho vivamente, Porto seco com água tónica, muito gelo, meia rodela de limão...) e olhei a cidade. E olhei o rio. Fiquei duas horas nisso, pasmado com o morro da Vitória (ou do Olival), vidrado no morro da Sé (ou da Pena Ventosa), pasmado com o ondulante vaivém do Douro. À minha frente S. João Novo, acima S. Bento da Vitória, um pouco à direita S. Francisco, depois, subindo o olhar, S. Lourenço (a igreja dos Grilos, dela falarei um dia destes, como há muito está prometido), depois a catedral amortalhada por andaimes... Igrejas, igrejas, o casario. E a imponente Alfândega Nova, à esquerda, e o vale do Rio Frio, por trás, o Horto das Virtudes (as Virtudes, outra vez). E o triste espectáculo do Convento de Monchique em ruínas, mais para a esquerda. E a ponte amortalhada por andaimes (à direita, novamente). E os troços visíveis da cerca dita Fernandina. E o buraco onde desemboca o encanado Rio da Vila. E o Douro, a razão de ser da cidade, o motor do comércio e a rota da prosperidade, tanto para jusante como para montante. E os barcos rabelos para turista ver, e os outros barcos para turista navegar. E o casario. E os telhados, as clarabóias. As cores...

As cores, leram bem. Quentes, mornas, frescas, excitantes ou sedativas. De Verão, na mormaça da tardinha, o Porto não é cinzento. O Porto nunca é cinzento. Ser do Porto, isto é, sentir o Porto, passa por aqui. E as descrições que se conhecem, por mais bem conseguidas que possam parecer, são sempre pálidos reflexos. Porque sentir o Porto está no campo do inefável. Por mais que um poeta escreva sobre o amor, nunca saberemos na justa medida, se justas forem as medidas, o quanto amou. Ser do Porto é isso. É algo que nunca partilhamos completamente, porque não sabemos como fazê-lo.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

bela foto.
jpc

22:41

 

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