0 comments | terça-feira, janeiro 31, 2006

As presidenciais vão longe, Cavaco já vai parando por Belém, Sampaio planeia a reforma e Portugal está, claro, na mesma. Que dizer, então, sobre a eleição, quando quase tudo foi dito? Só me ocorrem, como motivo de arranque, alguns disparates que se ouvem por aí, efeito corrente de quando os analistas profissionais se vêem na necessidade de analisar tudo e mais alguma coisa. Não o disse aqui, nem teria de o dizer, mas votei em Manuel Alegre. Porque, do leque de opções que tinha no boletim de voto, entendi ser a melhor escolha para o cargo. Não me interessa dizer porquê, apenas notar que dificilmente serei o único que assim fez, pelo que acho ridículo que tantos comentadores insistam em ver no tal milhão e duzentos mil votos descontentamento com este ou com aquele líder político, descrença nos partidos ou uma forma de castigar Mário Soares.

Quanto à dúvida sobre o que poderá fazer Alegre com os seus 20%, respondo que nada. A candidatura fez todo o sentido num contexto específico, que deixou de existir na noite de 22. A heterogeneidade de gente que se identificou com a candidatura nunca poderia resultar num partido, nem sequer num movimento de cidadania que não se sabe bem o que é, além de veículo para a sede de protagonismo de alguns. Só uma eleição presidencial, pela essência do que está em causa, permite essa heterogeneidade.

A existência de dois candidatos saídos do mesmo partido resultou, apenas, da ineficácia socialista na preparação da eleição presidencial (com tanto tempo que tiveram...), como já sucedera por ocasião das autárquicas, pródigas em tiros nos pés dados pelo aparelho do PS (o Porto, com o seu líder da oposição sedeado em Bruxelas, é um entre vários exemplos). Foi essa permanente indecisão que fez pender para o lado de Cavaco os tais votos oscilantes, que sistematicamente ditam os favores da bipolarização governativa em que um dia caímos. Não é honesto, porém, que se queira ver em Manuel Alegre a causa da derrota da esquerda, como o deram a entender algumas vozes más perdedoras, como a de Ana Gomes, ou o triste episódio protagonizado por José Sócrates (triste de todas as formas, soubesse ele, ou não, que estava a interromper o discurso do segundo candidato mais votado).

Como não é nada honesto, também, que queira ver-se no resultado desta eleição uma derrota copiosa ou o triste fim de Mário Soares. Goste-se ou não, Soares existe para perdurar, algo que não se passa com Cavaco. Ou Sócrates. Ou José Barroso. Ou Guterres. Ou até Sá Carneiro, que a desdita transformou em mito sem que chegasse a ser figura histórica da dimensão de Soares ou Cunhal. Mário Soares é, evidentemente, mais do que uma eleição contra Cavaco. Embora a escolha de Soares pelo PS me tenha desagradado, porque anacrónica e sintomática de uma lógica aparelhística e de pequenas vinganças, o certo é que ele aceitou (ou quis) ir à liça numa situação em que, claramente, remava contra a maré. Mostrou-se combativo e saiu com dignidade. O tipo de discurso que usou ao longo da campanha foi apenas uma estratégia, tão válida como a de andar por aí mudo e quedo, sem fazer ondas nem comer em público, ou, pelo menos, em frente às câmaras de televisão. Soares tinha um propósito difícil, falhou-o com naturalidade e sai do processo sem uma beliscadura. Se o dito clã Soares, ou o filho, fica com o futuro comprometido, é coisa que nada me interessa.

Ganhou Cavaco. Como qualquer outro faria, usou o chavão de ser o presidente de todos os portugueses. Retórica de pacotilha. É o presidente da República. Ponto. Ganhou Cavaco, não com a facilidade que terá chegado a sonhar, mas com autoridade. À primeira volta (não ganharia uma segunda, é quase certo). Fiquei triste por ele ganhar, pensara-o fora de cena há dez anos. Dele, enquanto primeiro-ministro, ficaram o autoritarismo e o autismo, o favorecimento das elites (não me venham cá com as reformas que subiram), o início do afundamento da classe média em créditos de todo o feitio, o desbaratar do maná europeu em obras públicas mal feitas...

Há dias, um diálogo de ébrios, encostados a um balcão de café, pareceu-me revelador. "Religião não se discute! - dizia um - Cumpre-se e mais nada", ao que o outro somava uma pitada de sabedoria: "É como a política; vota-se sempre no mesmo e, depois, logo se vê". Pensei eu que foram assim decididos muitos dos votos que elegeram Cavaco Silva. Não o quis para presidente da República. Mas também não é o papão. Não é nenhum Le Pen, não é nenhum Berlusconi. Bem ou mal, a barca continuará a andar, até porque não faltam pontos de convergência entre o que o novo presidente defende e o que o primeiro-ministro faz.

Até isto contribui para que estas eleições tenham sido absolutamente atípicas. Sócrates, que seria, em tese, o grande derrotado, acaba por não o ser, porque não terá de alterar os rumos que traçou para a governação. Perdeu o país? Também não. O país tem vindo a perder, desumanizando-se, há muito tempo. O dia 22 de Janeiro foi apenas mais um episódio.