«O que é nosso
«Há 33 anos, de súbito, o mundo abriu-se, e o horror, que parecia irremediável e sempiterno, desmoronou-se de um momento para o outro sob os nossos olhos, deixando à vista o tamanho, desmesurado como nunca, da esperança. Foram breves e deslumbradas horas, e talvez tenha valido a pena ter vivido só por elas. Nunca, como nesse dia, estivemos tão próximos uns dos outros nem fomos tão frágeis e tão vulneráveis. Como sonâmbulos, tacteávamos convulsamente o mundo e a vida à nossa volta (o mesmo mundo de sempre, inesperadamente límpido e primeiro!), tropeçando nos nossos próprios sentimentos, sem percebermos se estávamos dentro se fora de nós. E só tínhamos uma palavra desconhecida para o que os nossos olhos viam e o nosso coração sobressaltadamente experimentava: "liberdade". Murmurávamo-la para nós mesmos e gritávamo-la uns para os outros como quem revela um segredo longo tempo reprimido, descobrindo alvoroçadamente algo novo e espantoso: não tínhamos medo. Depressa, porém, a dúvida e a suspeita saíram da sombra e se interpuseram entre nós, apropriando-se da única coisa que tínhamos, uma imatura palavra, para no-la vender de novo, devidamente embrulhada e a prestações. 33 anos depois ainda estamos a pagar (e a quem!, e por que preço!) o que é nosso. »
Manuel António Pina
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Gostei tanto desta crónica do Pina que, atendendo a que nem todos os leitores da FdV passam os olhos pelo JN, aqui a reproduzo, linkando-a devidamente.
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