3 comments | sexta-feira, setembro 01, 2006

Gosto de futebol. Gosto, particularmente, do F. C. Porto. Em regime de quase exclusividade. Sempre achei idiota a presunção de que o futebol é arte, simplesmente porque arte pressupõe intencionalidade criativa, espera-se que transmita algo, uma ideia, uma sensação, uma opinião. Quando há beleza num lance de futebol, é algo semelhante ao belo da natureza, que transcende toda a arte. Porém, o que me interessa, no futebol, é que o Porto ganhe. Dá-me especial gozo quando o Porto ganha ao Benfica. Porque futebol é desporto, competição, tribalismo mais ou menos moderado. Não é arte. Portanto, se continuarmos a ganhar aos outros já me chega. Quero lá saber se deixamos de ir à Europa.

A introdução foi sinuosa, admito, mas talvez já tenham percebido que se deve a esta vergonha a que se tem chamado "caso Mateus". Mas a vergonha não é, entenda-se desde já, a salgalhada em que estão metidos os campeonatos, a inoperância da Liga ou a incompetência da Federação. A vergonha é a possibilidade de a República cair às mãos das obscuras organizações que gerem o pontapé na bola.

Falha-me, evidentemente, a capacidade de análise jurídica, mas não a capacidade de pensar um pouco além da vulgar conversa de café ou de barbeiro. No uso dessa modesta faculdade, parece-me óbvio que, se as associações de associações, como a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, e as associações de associações de associações, como a Fédération Internationale de Football Association, têm todo o direito de impor as regras que lhes apetecer para o bom (ou mau, que importa?) funcionamento das provas desportivas, não podem de modo algum, por outro lado, travar os direitos que assistem a cidadãos e instituições de um país (ou de um conjunto de países, lá iremos) para regular a vivência em sociedade. Ou seja, o Gil Vicente deve poder recorrer aos tribunais civis para os efeitos que considere legítimos, exteriores à mera quezília desportiva (v.g. o árbitro que fez vista grossa ou a baliza que estava fora do sítio). Se não pode, está a ser privado de direitos que a Constituição lhe confere. Digo eu, que nada percebo de leis.

Um organismo internacional como a FIFA, que tem sido alvo de múltiplas denúncias de alegada corrupção, pode fazer sobre um país como Portugal todas as pressões que entender. Mas é absolutamente inaceitável que um país como Portugal ceda a essas pressões. É absolutamente inaceitável que um conjunto de países, como a União Europeia, possa fazer vista ainda mais grossa do que a de alguns árbitros, em face de tais pressões.

Se os clubes forem afastados das competições internacionais, isso não é uma questão de Estado. Se a Selecção Nacional afastada for, isso não é uma questão de Estado. Se a Justiça for travada por causa desses interesses, é uma humilhação para o Estado.

Não percebo de leis, já o disse, mas alguma coisa saberei de jornalismo. Vi há pouco, de relance, uma entrevista dada à RTP pelo presidente do Gil Vicente, que se mostrou esclarecedora, não pelo que ele disse, mas pela ideia subliminar que os entrevistadores pareciam estar a querer incutir nos telespectadores: o Gil Vicente estará a ir longe de mais e está em jogo, além dos principais clubes, a sacrossanta Selecção.

Está em jogo muito mais do que uma simples selecção de futebol, muito mais do que os clubes que moram num ou noutro coração de adepto. Em milhões de corações de adeptos, seja. Está em jogo a integridade moral da República. Se o Gil Vicente tem convicções inabaláveis a respeito deste assunto, deverá ir o mais longe que a lei lhe permitir. Deverá esgotar os tribunais portugueses e os tribunais europeus, como um dia fez esse jogador chamado Bosman, com uma relevância e notoriedade que nunca conseguiu igualar nos relvados.

O poder e os direitos dos cidadãos estão nos estados de Direito, são defendidos nos tribunais. E são inalienáveis. Se Portugal impedir isso, é como se Portugal não existisse.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Na mouche! 100% de acordo da primeira à última linha.
Abraço,

12:53

 
Blogger Elmano Madail said...

Meu caro, tirando a paixão clubística, que me é absolutamente estranha, como sabes, este é um dos melhores textos - senão mesmo o melhor - que me foram dados a ler sobre a questão. Abraço.

20:36

 
Blogger AM said...

Fazendo coro com os comentadores anteriores.
Estou de acordo, 100 (ou 200) por cento de acordo, no essencial.
No Porto (e no Benfica) tambem :-)

Seja qual for o final desta história, só me surprenderá se quem "manda" fizer prevalecer a dignidade :-(

Vergonha?
Não

Eu não tenho que ter vergonha, pois não sou responsável pelo que "eles" fazem.

"Eles" não tem vergonha Ponto

Um abraço
AM

15:37

 

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