Vale Formoso, Covilhã, 18 de Julho de 2001
O sobressalto de um alarme no telemóvel, hoje de manhã, deu-me notícias de aniversário. "Tio Quim, 98", li no visor, e mais não fiz do que apertar o aparelho com força. O último aniversário que celebrámos do irmão mais novo da minha avó materna foi o 95.º, um ano depois da foto que mostro. Zarpou deste mundo antes de completar 97, despedimo-nos dele vestido no uniforme de sargento da Marinha. Nunca o conheci como tal, quero dizer, como sargento, ia fazer 60 anos quando nasci. Mas sempre vi nele uma firmeza que lhe adviria da vida militar, ou de ser de outros tempos, sei lá, ou dos genes, por que não?... Eu, que nada tenho a ver com tropas nem com alguns valores de antanho que seriam sagrados para este meu tio-avô, identifico-o sempre como o perfeito modelo de integridade, de honradez e de sentido de justiça.
Quando éramos pequenos - e eu sou o mais novo da primalhada em causa -, divertiamo-nos muito com o repertório de insultos com que o Tio Quim brindava aqueles que lhe pisavam os calos. Sem ordinarices, claro. Pulha era um termo recorrente, mas eu sempre me fixei na sequência-rajada "canalha, reles, ordinário". Era dócil e carinhoso, claro que à moda dele, e não comprava conflitos. Mas os aborrecimentos iam ter com ele, na vida de lavrador que abraçou para melhor saborear a reforma, geralmente por causa de invejas, muitas vezes materializados na falta de respeito pelo próximo, que, no mundo rural, significa um muro fora do sítio ou um caminho destruído, uma linha de água desviada ou fruta roubada de um pomar... Fosse como fosse, era respeitadíssimo lá na aldeia. Austero, digno. Digníssimo. Não era um homem jovial, nunca assim o vi, mas foi o mais carinhoso dos maridos ao longo de anos de sofrimento da amada Olímpia, a Tia Marquinhas que não pôde partilhar com ele os últimos anos.
Os setembros da minha meninice eram sempre ali passados, nessa aldeia fronteira a Belmonte, tocando os calcanhares à Serra da Estrela. Quando chegávamos, pouco demorava até que o Tio Quim chegasse com o cesto cheio da mais saborosa fruta do mundo. Era em casa dele que eu trepava a uma gigantesca figueira, aí ficando a tarde inteira a devorá-los, aos figos, quase até que me saltassem pela garganta.
Hoje, uma vez mais, não apaguei o lembrete que tenho no telemóvel. Havia em mim uma secreta esperança, talvez egoísta, de ver aquele homem chegar aos cem anos. Não sei se foi ele que não esteve para aí virado, não sei se a vida o traiu, não sei como serão os amanhãs. Ai de mim se soubesse dessas coisas.
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