“Existem duas maneiras de ser imparcial: a do sábio e a do juiz. Têm uma raiz comum, que é a honesta submissão à verdade. (...) Chega, contudo, um momento em que os dois caminhos se separam. Logo que o sábio observou e explicou, dá-se por fim a tarefa. Ao juiz falta ainda dar a sentença. Se, calando em si qualquer inclinação pessoal, a dita somente de harmonia com a lei, julga-se imparcial. Sê-lo-á, efectivamente, segundo parecer dos juízes. Não segundo o parecer dos sábios. Porque não é possível condenar ou absolver sem tomar partido por uma tábua de valores que não releva de nenhuma ciência positiva. Que um homem tenha morto outro é um facto, eminentemente susceptível de prova. Mas castigar o assassino supõe que se considera o assassínio coisa condenável: o que, bem vistas as coisas, não passa de uma opinião em que não estão de acordo todas as civilizações.”
É a segunda vez que uso esta citação de Marc Bloch, um dos homens em que radica a chamada "Nouvelle Histoire", co-fundador, com Lucien Fèbvre, da revista "Annales...", fuzilado enquanto resistente ao nazismo. Uso-a, novamente, por causa do equívoco em que sempre tem assentado e, parece-me, continuará a assentar a forma como nós, ocidentais, lidamos com os que de nós diferem. Uso-a, agora, por causa do terrorismo. Uso-a por causa do modo ocidental de combater o terrorismo.
Antes de mais, quero tornar ponto assente que o terrorismo me repugna. Nem tenho de explicar porquê. Porém, perante vários textos que tenho lido na blogosfera, quero discorrer um pouco sobre o assunto, justificando desde já com o cansaço alguma ideia que possa parecer menos clara.
Do ponto de vista ocidental, o nosso ponto de vista, há alguns pressupostos que muitos querem tornar inquestionáveis, mas que me parecem frágeis, como qualquer pressuposto acaba por ser. Vou salientar dois deles: "nunca negociar com terroristas"; "combatê-los nos países que os acolhem e apoiam, para não termos de os combater em nossas casas".
O que se passou em Londres desmonta pela base o segundo desses argumentos, recorrente na argumentação da administração norte-americana que tem o rosto de George W. Bush. Os autores dos atentados eram cidadãos britânicos, muçulmanos, tão descendentes de imigrantes como qualquer cidadão dos Estados Unidos, índios à parte. Ou seja, Tony Blair teria de os combater em casa, porque é lá que eles estão, porque é em qualquer sítio que eles podem estar. Tem sido salientado, por muitos especialistas, que Al-Qaeda já deixou há muito de ser uma organização. É, de certo modo, uma profissão de fé, feita por grupos que surgem autonomamente, doutrinados por uma série de gurus que propagam a mensagem contra o Ocidente, na Internet ou noutro sítio qualquer. É algo que as armas dificilmente combaterão, algo que as armas certamente alimentam. Estes jovens podem ser ingleses, italianos ou suecos, de origem paquistanesa, árabe ou marroquina, mas têm em comum a intensidade da pertença à nação islâmica. São jovens que, a cada dia que passa, tomam conhecimento daquilo que, sob um determinado ponto de vista, são agressões ao Islão, seja em Israel, no Iraque ou onde calhar. São jovens que, sob esse mesmo ponto de vista, têm como mais sagrada missão, como razão fundamental das próprias vidas, a defesa do Islão. Pensam assim, são diferentes. Poderemos dizer que estão errados? Presunção nossa, eventualmente, pois implica que tenhamos a vaidade de nos julgarmos certos.
Enquanto o Ocidente casmurro não compreender que o que se passa em Nova Iorque, Londres, Madrid, Bali, Casablanca... passa pelo que se faz na Palestina, continuarão a rebentar bombas. Enquanto o Ocidente pensar que pode impor um regime ocidentalizado num país como o Iraque, continuarão a rebentar bombas. Enquanto o Ocidente quiser ter uma atitude colectiva de predomínio, à escala mundial, continuarão a rebentar bombas.
Terão os ocidentais de abdicar das coisas que os distinguem? Claro que não. Mas evitar que continuem a rebentar bombas pressupõe, antes de mais, humildade. Para as relações entre povos importam muitas das regras que devem pautar as relações entre pessoas. Respeitar a diferença, tentando entendê-la, é um desses princípios basilares, é algo que o nosso mundo, encabeçado pelos Estados Unidos, teima em não conseguir ou em não querer. E dessa teimosia releva o problema que é colocado pelo outro pressuposto ocidental que referi, o da recusa em negociar com terroristas. É evidente que, por um lado, os atentados, repugnantes atentados, são gestos criminosos com os quais não há que transigir. Porém, se fizermos uma tentativa não muito esforçada de os compreender, teremos de admitir que, para quem os perpetra, os atentados são actos de guerra. Enquanto a "war on terror" é travada com uso de sofisticada tecnologia bélica, a "jihad" é feita com bombas em redor da cintura ou dentro de uma mochila. Para nós, os suicídios em troca de uma elevação ao martírio não fazem sentido, mas só seremos inteligentes quando admitirmos que, para aquela gente, é algo que faz todo o sentido. E, se fôssemos capazes de nos abstrair dos preconceitos que enformam a nossa identidade cultural, entenderíamos que uma e outra postura são igualmente legítimas, porque igualmente repugnantes. Claro que a guerra (não a "guerra preventiva"), enquanto resposta a um agressor, é admissível, dentro da nossa escala de valores. Mas será assim tão difícil reconhecer que, também, eles sentem que estão a defender-se de alguma coisa?
Reconheço que "negociar com terroristas" é coisa complicada, por uma série de razões. Por um lado, isso afigura-se-nos como uma forma de pactuar com criminosos. Por outro, como o terrorismo é cada vez menos uma organização, como é possível negociar com terroristas? Como pode negociar-se com um conceito? Não pode. O que podemos, pela parte que nos toca, é tentar negociar com as nossas consciências. Só se o fizermos poderemos esperar que os outros o façam. Se pensarmos que os fundamentalistas islâmicos são meros inimigos do nosso "way of life", que preferem andar a matar inocentes em vez de ficarem quietos nas respectivas terras, nunca iremos a lado nenhum. Teremos de tentar entender, com humildade, o que os leva a rebentar bombas, a desviar aviões, a matar indiscriminadamente, tão indiscriminadamente como o fez o "presente" largado do Enola Gay, tão indiscriminadamente como fizeram os bombardeiros aliados sobre Dresden. E, se percebermos que a causa também somos nós, devemos ter a força necessária para mudar.
3 Comments:
Concordo a 1000%
00:30
Claro que sim.
Todos os dias venho aqui.
Uns dias fico desiludido por não haver actualização.
Outros, fico deleitado por haver.
Obrigado.
Antonio Moreira
09:17
Keep up the good work
» »
11:37
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